Por João dos Reis Silva Júnior
Não há caminho suave para aceitar a domesticação do pensamento. A máquina, travestida de novidade, chega como rio represado: em vez de fertilizar, alaga, arrasta, encobre o terreno fértil onde antes germinava a dúvida. O que chamam de inteligência artificial é antes cercado de ferro, como a cerca de arame que no romance expulsa o camponês de sua própria terra. O pensamento, agora, é pasto arrendado ao algoritmo.
Eis que, diante dela, a mente humana se vê como Fabiano em Vidas Secas, repetindo frases prontas, empurrado pela lógica da sobrevivência, incapaz de escapar ao mando invisível. A máquina não amplia horizontes, mas estreita, como vereda que se fecha diante do andarilho em Guimarães Rosa. O inesperado, que antes surgia da curva do caminho, é interditado por trilhos fixos, já traçados pelo cálculo.
Na criação estética, o que aparece não é a dor de Macabéa em A Hora da Estrela, mas sua caricatura. A máquina não sofre, não hesita, não conhece fracasso. Entrega textos limpos, mas sem marcas de vida, como aquelas paisagens de cartão que substituem o sertão árido. Um enfeite que não traz as cicatrizes da experiência.
A invenção verdadeira nasce da vertigem, do tropeço, do silêncio que antecede a palavra. A inteligência artificial é como Bentinho, em Dom Casmurro, tentando controlar todos os gestos, mas incapaz de alcançar a incerteza real da dúvida. O que se oferece é cálculo travestido de criação: aparências que imitam, mas não inventam.
Escrever e ler exigem tempo. Como Riobaldo, que fala aos pedaços, que divaga, que se demora. O algoritmo comprime essa demora em segundos, como se a travessia pudesse caber num atalho asfaltado. O resultado é velocidade sem experiência, palavra sem eco.
Cada texto humano é biografia, gesto de quem se reconstrói no ato de escrever. É como Ana Terra, de Erico Verissimo, que só encontra a si mesma no enfrentamento da vida bruta. Ao entregar esse processo à máquina, o sujeito abdica de sua história, aceita viver como sombra. O texto automatizado não devolve nada ao corpo, não reorganiza, não fere nem cura.
Saber se reduz a ficha de cartório
O domínio político também se infiltra: a universidade torna-se vitrine, como a cidade grande que humilha os personagens de Graciliano Ramos em Angústia. O algoritmo é o cobrador silencioso que transforma ideias em moeda de reputação. O saber, assim, perde densidade, reduz-se a ficha de cartório.
E há ainda o mais fundo: a delegação cognitiva. É como se o coração fosse entregue a um estranho, como em O Primo Basílio, onde a intimidade vira simulacro. Ao transferir ao algoritmo funções do cérebro, não apenas aliviamos tarefas banais: renunciamos à memória, à imaginação, à própria capacidade de hesitar.
O que chamam de eficiência é apenas o empobrecimento humano, a colonização da dúvida, o esvaziamento da invenção.
Essas imagens não são ornamento: são cicatrizes que mostram o preço da rendição. A inteligência não se alimenta de algoritmos, mas de tempo, corpo, silêncio e erro. Recusar a máquina não é gesto de nostalgia, mas de sobrevivência. Pois só resiste quem ainda se atreve a habitar o imprevisto, a tropeçar na palavra, a errar sem pedir desculpas ao cronômetro.
João dos Reis Silva Júnior é professor titular da Universidade Federal de São Carlos.
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