Desde os primeiros traços nas paredes da Serra da Capivara, o povo ancestral registrava sua história com as mãos, o corpo e a imaginação. Nas gravuras rupestres, não se via apenas caça ou rituais: via-se um povo que já entendia o poder do registro. Milênios depois, esse mesmo impulso de dizer “estivemos aqui” encontrou nova forma de expressão: a fotografia.
No Brasil, a fotografia não foi apenas um instrumento de registro. Foi – e continua sendo – um ato político. Uma arma contra o apagamento, o racismo e a invisibilidade.
Quando Hércules Florence, em 1832, experimentou fixar imagens com a luz em Campinas, não imaginava que ajudava a forjar uma ferramenta que serviria para dar rosto àqueles que o sistema escravocrata insistia em tornar anônimos. Enquanto a elite europeia retratava nobres, aqui a fotografia passou a mostrar o que muitos queriam esconder: o corpo negro em trabalho forçado, mas também em dignidade.
Marc Ferrez, talvez o mais conhecido fotógrafo do século XIX, registrou em 1882 uma das raras imagens de um navio negreiro com sua “carga de escravizados”. À época, a imagem servia ao comércio. Hoje, ela grita por memória e justiça. Mostra que, mesmo usada para legitimar a opressão, a fotografia pode se transformar em testemunho e resistência.
Por muito tempo, o olhar sobre o povo negro foi colonial, distorcido, violento. A fotografia serviu para reforçar estereótipos e legitimar o racismo científico. Mas ao longo do século XX essa realidade começou a mudar.
Fotógrafos negros e de povos originários como Cris dos Anjos, Eustáquio Neves, Jaider Esbell e Januário Garcia, entre outros, assumiram o controle da lente. Com isso, passaram a contar suas próprias histórias. Cada clique tornou-se uma revolução: o corpo negro e originário deixa de ser objeto e se afirma como sujeito. A religiosidade afro-brasileira, antes criminalizada, passa a ser retratada com reverência. O cabelo crespo, o Orixá, o atabaque, o terreiro, o manto da mãe de santo – tudo isso passa a ser celebrado como patrimônio.
A fotografia se torna, então, um ato de reexistência.
Além de denunciar violências, a imagem também preserva a cultura. Em comunidades quilombolas, a capoeira é registrada em movimento; nos candomblés, rituais de iniciação são documentados com respeito; nas periferias, grafites, rodas de samba e blocos afro são eternizados. Esses registros não são apenas lembranças: são arquivos vivos, documentos que garantem que futuras gerações saibam quem foram seus antepassados.
São também ferramentas de educação. Quando uma escola mostra aos alunos uma foto de um quilombo em resistência ou de um terreiro em pleno axé, está ensinando respeito e combatendo preconceito com conhecimento.
Hoje, a tecnologia amplia esse poder. Com um celular na mão, qualquer pessoa pode ser guardiã da memória, agente de mudança, historiadora de sua própria comunidade.
Por isso, o chamado é claro: fotografe sua comunidade, registre seus rituais, documente suas lutas, compartilhe suas belezas, proteja seus sagrados. Use a imagem como arma contra o racismo, como elo entre passado e futuro.
A fotografia nunca foi neutra. E quando está nas mãos do povo negro, torna-se um ato de amor, de justiça e de liberdade. No mês em que se comemora o Dia Mundial da Fotografia, em 19 de agosto, reafirmamos: a fotografia é a nossa aliada.
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*Ògan Assogbá Luiz Alves é fotógrafo de Brasília.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.