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Nesta coluna, a musicoterapeuta Deyse Araújo escreve sobre capacitismo a partir do cotidiano de famílias atípicas, refletindo sobre as barreiras – visíveis e invisíveis – enfrentadas em contextos c...ver mais

O viés capacitista na reabilitação e o desafio de superar as barreiras atitudinais

Por Rosana Cavalcante Pereira*

Ser hábil não é andar, falar ou mover-se conforme um padrão, mas ter condições reais de participar da vida com dignidade

A opressão é sempre sustentada e reproduzida por uma ideologia, o componente simbólico que acompanha as práticas materiais de subordinação. O capacitismo deriva da “ideologia da normalidade”, que fundamenta a classificação das pessoas com base em seus corpos e habilidades, reforçando uma hierarquia entre os considerados normais e superiores e os vistos como desviantes e inferiores. Isso legitima a marginalização, a sujeição e até a violência contra pessoas com deficiência.

Uma forma silenciosa do capacitismo se manifesta nas chamadas barreiras atitudinais: comportamentos e posturas individuais, institucionais e/ou sociais que desvalorizam pessoas com deficiência, seja tratando-as como incapazes, vítimas de uma tragédia pessoal ou, em outro extremo, como heróis da superação. Essas barreiras estão presentes em todos os níveis do sistema de saúde e impactam diretamente a qualidade e a efetividade do atendimento oferecido, ao negar à pessoa com deficiência o direito à diferença e o respeito à sua singularidade.

No contexto do cuidado às pessoas com deficiência, preconceitos, estereótipos e expectativas baseadas no “normalismo” permeiam as relações sociais e profissionais, somando-se às dificuldades impostas pelas limitações físicas e/ou cognitivas.  A ideia de que existe um corpo ideal – plenamente capaz, independente e produtivo – orienta metas terapêuticas que desconsideram os contextos e desejos das pessoas com deficiência.

Nesse modelo, a reabilitação tende a ser compreendida como o retorno a uma suposta funcionalidade “normal”, centralizando no paciente a responsabilidade pelo sucesso terapêutico, e muitas vezes reforçando a sensação de inadequação e fracasso.

Essa lógica tem impactos profundos. Profissionais da saúde frequentemente tomam decisões sobre alta, metas terapêuticas e informações a serem transmitidas baseando-se em suas próprias expectativas negativas sobre o impacto da deficiência na vida das pessoas. Essa postura desconsidera o que foi chamado de “o paradoxo da felicidade”, ou a “alta qualidade de vida contra todas as chances”, acerca dos quais há vasta literatura científica, em que pessoas com doenças crônicas e deficiências severas relatam ser felizes e ter boa ou excelente satisfação com a vida, a despeito de que, para muitos observadores, elas vivem vidas indesejáveis.

Ao projetarem seus valores sobre o que consideram uma vida válida, os profissionais correm o risco de limitar a autonomia dos pacientes e reforçar estigmas capacitistas. Em contextos de doenças degenerativas, por exemplo, a decisão sobre interrupção de tratamento ou limitação de intervenções é, por vezes, tomada unilateralmente, com base em julgamentos de valor sobre a qualidade de vida com deficiência, reforçando uma postura paternalista que, mesmo quando bem-intencionada, desconsidera os desejos e perspectivas do usuário e de sua família.

Recorrentemente, cuidadores de pacientes com Distrofia de Duchenne relatam que desconheciam a possibilidade de prolongar a vida do filho com suporte ventilatório, porque nenhum médico jamais havia mencionado essa opção. A omissão, nesse caso, configura negligência informacional e é uma forma grave de barreira atitudinal, que restringe alternativas e direitos.

O normalismo também se expressa na insistência de recuperar a marcha em casos em que essa aquisição é prognóstico improvável, demanda grande gasto energético e potencializa riscos de queda. Nesses casos, a reabilitação poderia concentrar esforços na autonomia do paciente na utilização da cadeira de rodas.

A problemática do tema consiste na busca por uma “solução” inalcançável para a maior parte da população, enquanto investimentos muito menores podem ser destinados à ampliação de calçadas acessíveis, transporte inclusivo e mobilidade urbana para cadeirantes, promovendo funcionalidade e participação real

Nesse sentido, a influência do normalismo pode ser vista nos investimentos vultosos em tecnologias “restauradoras” de marcha. O projeto do neurocientista Miguel Nicolelis, por exemplo, que criou um exoesqueleto para fazer pessoas com paraplegia voltarem a andar, consumiu recursos altíssimos, comparáveis, segundo o próprio, aos custos de uma missão espacial. A problemática do tema consiste na busca por uma “solução” inalcançável para a maior parte da população, enquanto investimentos muito menores podem ser destinados à ampliação de calçadas acessíveis, transporte inclusivo e mobilidade urbana para cadeirantes, promovendo funcionalidade e participação real.

Não se trata de abandonar o avanço científico, mas de equilibrar prioridades para que o cuidado seja plural, acessível e centrado nas possibilidades reais de cada sujeito. Isso ilustra que, como sociedade, seguimos investindo fortunas para fazer corpos se adaptarem ao mundo, quando poderíamos transformar o mundo para acolher todos os corpos.

Ser hábil não é andar, falar ou mover-se conforme um padrão, mas ter condições reais de participar da vida com dignidade. A deficiência não deve ser entendida como um problema inerente ao indivíduo cujo corpo foge à norma, mas como uma questão com profundas raízes sociológicas e políticas, marcada pela sistemática negação de direitos a pessoas com diferenças corporais, sustentada por valores, atitudes e práticas discriminatórias, tanto em nível individual quanto institucional. Por isso, a reabilitação não deve ser entendida como um percurso de “normalização”, mas como um processo de remoção de barreiras – inclusive as atitudinais – e de sustentação de possibilidades reais de vida e pertencimento, sem supervalorização de conquistas ou subvalorização de capacidades.

Desconstruir barreiras atitudinais exige, portanto, um compromisso ético e político dos profissionais de saúde para além dos protocolos técnicos. A ampla adoção da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), em substituição ao modelo biomédico centrado na CID, amplia nosso olhar para fatores ambientais e sociais que impactam a vida da pessoa, deslocando o foco da “deficiência” para a funcionalidade no contexto de vida de cada sujeito. É uma medida importante, mas deve ir além do discurso, implicando ações concretas. Uma leitura crítica da CIF, evitando que seja usada de forma mecânica ou reducionista,  pode ajudar a reconhecer os fatores contextuais como elementos centrais da funcionalidade.

Além disso, para enfrentar essas barreiras, o Projeto Terapêutico Singular (PTS) é uma ferramenta fundamental, pois permite a construção conjunta do cuidado, centrado nas necessidades e desejos reais do usuário. Outras medidas essenciais são a garantia do acesso de pessoas com deficiência à universidade, o fomento a pesquisas feitas por essas pessoas, a inclusão da imprescindível crítica ao modelo médico (seus reflexos na reabilitação e suas implicações políticas) na formação de profissionais de reabilitação e a adoção de práticas centradas na pessoa (PCP) e na participação social.

Considerar essas importantes medidas para romper com o status quo é crucial para que não reforcemos, apesar das inegáveis boas intenções, a opressão e marginalização das pessoas com deficiência. Nosso compromisso ético, como profissionais da saúde, é abandonar a lógica do normalismo e atuar na direção da escuta, da equidade e da justiça social, propondo e atuando em formas não apenas de reabilitar os usuários, mas de “habilitar” a sociedade para adequar-se às diferentes e legítimas formas de existir e se mover no mundo.

* Rosana Cavalcante Pereira é fisioterapeuta e mestra em Fisioterapia, pelo Programa de Pós-Graduação em Fisioterapia da Universidade Federal da Paraíba (PPGFis/UFPB). Atua há 17 anos no Centro Especializado em Reabilitação (CER IV). Foi convidada pela musicoterapeuta Deyse Araújo para escrever este texto.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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