Por Deyse Araújo*
Quando escolhi a musicoterapia como profissão, sabia que estava diante de uma prática potente, capaz de transformar vidas. Mas foi no Sistema Único de Saúde (SUS) que percebi e compreendi como a música pode se tornar saúde, dignidade e cidadania.
O SUS é uma conquista coletiva do povo brasileiro, que garante o acesso universal e integral à saúde. No entanto, ainda é comum vermos práticas terapêuticas não farmacológicas serem pouco valorizadas ou até invisibilizadas. A musicoterapia, reconhecida pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) e pelas redes de atenção à saúde, além de ser agora regulamentada pela Lei nº 14.842/2024, que estabelece critérios para o exercício da profissão, está entre essas práticas que, apesar de fundamentais, ainda lutam por maior reconhecimento e espaço institucional.
O papel da musicoterapia no SUS
A musicoterapia tem um papel fundamental em diferentes níveis de atenção do SUS:
Na Atenção Primária, a música promove vínculos comunitários, fortalece grupos e contribui para a prevenção de agravos em saúde mental.
Na Atenção Especializada, acompanha processos de reabilitação física, neurológica e cognitiva, ampliando possibilidades de comunicação e expressão.
Na Saúde Mental, em Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e hospitais, a música abre caminhos para a expressão de afetos, redução da ansiedade e fortalecimento da autoestima.
Na reabilitação de pessoas com deficiência, a musicoterapia estimula funções motoras, cognitivas e comunicacionais, sempre respeitando a singularidade de cada usuário.
Nos contextos de vulnerabilidade social, é um recurso de escuta e acolhimento, que ajuda a lidar com dor, violência e exclusão.
Atendo usuários do SUS de diferentes contextos sociais e econômicos, desde crianças até adultos, e percebo diariamente como a música atravessa todas as faixas etárias e classes sociais. Muitos desses usuários vivem situações de vulnerabilidade social, incluindo pobreza, insegurança alimentar, moradia precária, violência doméstica ou negligência institucional. A musicoterapia rompe a visão exclusivamente biomédica, oferecendo um cuidado biopsicossocial, capaz de acolher as dimensões física, emocional, cognitiva e social de cada pessoa. Ela cria espaços seguros, fortalece vínculos familiares e comunitários e promove oportunidades de expressão, comunicação e autonomia que muitas vezes não existem em outros contextos da vida desses usuários.
Exemplo de prática clínica
No meu dia a dia como musicoterapeuta no SUS, tenho acompanhado diferentes histórias que revelam a força da música como ferramenta de cuidado. Uma delas é a de uma criança de seis anos, dentro do espectro do autismo, que realiza todas as suas atividades de vida diária cantarolando.
Apesar das dificuldades de linguagem, da rigidez nas rotinas e dos comportamentos desafiadores diante de mudanças, foi percebido a música não só como um detalhe em sua vida, mas a chave para sua comunicação e autonomia.
A partir desse cantar espontâneo, que permeia todas as atividades de vida diária, como tomar banho, comer e se vestir, muitas vezes acompanhada pelos pais ou cantando sozinha, foi possível estruturar intervenções terapêuticas que favoreceram a ampliação das interações sociais, o estímulo à flexibilidade e o fortalecimento dos vínculos familiares e escolares.
Esse relato é apenas um exemplo entre tantos que surgem cotidianamente, mas demonstra como a musicoterapia, dentro do SUS, consegue transformar características singulares em portas de entrada para o desenvolvimento, a inclusão e a qualidade de vida.
Desafios que enfrentamos
Infelizmente, ainda somos poucos no SUS. Em muitos municípios, não há vagas específicas para musicoterapeutas. Muitas equipes desconhecem o potencial do nosso fazer, e gestores ainda resistem em investir na musicoterapia como prática terapêutica consolidada.
Mas sei, pela minha vivência, que cada espaço conquistado traz resultados que falam por si. Usuários que conseguem se comunicar melhor, famílias que encontram alívio no cuidado, comunidades que descobrem na música um espaço de pertencimento.
Por que investir em musicoterapia no SUS?
Porque investir em musicoterapia é investir em humanização do cuidado, em evidências científicas que comprovam resultados, e, principalmente, em um modelo de saúde que reconhece o ser humano em sua integralidade.
A música não substitui remédios, nem elimina dificuldades, mas oferece caminhos únicos para que cada pessoa se reconheça como sujeito de direitos, capaz de se expressar, criar e se relacionar.
Por uma musicoterapia presente em todo o SUS
Investir em musicoterapia é investir em humanização do cuidado, em evidências científicas que comprovam resultados, e, principalmente, em um modelo de saúde que reconhece o ser humano em sua integralidade.
A música não substitui remédios, nem elimina dificuldades, mas oferece caminhos únicos para que cada pessoa se reconheça como sujeito de direitos, capaz de se expressar, criar e se relacionar.
Escrevo este artigo não apenas como profissional, mas como alguém que testemunha diariamente o impacto da música na vida de usuários do SUS. Vejo, na prática, que a musicoterapia transforma. Ela acolhe onde há dor, faz do caos terreno fértil, cria vínculos onde havia isolamento.
Por isso, defendo que o SUS precisa ampliar o acesso à musicoterapia em todas as suas esferas. Não se trata apenas de fortalecer um serviço, mas de garantir cidadania, inclusão e dignidade por meio da música.
*Deyse Araújo é musicoterapeuta. Atende pessoas com deficiência e autismo pelo SUS.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.
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