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Violência obstétrica: corpos violados e gritos silenciados

Coluna coordenada por Xaman Korai Minillo, professora e coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) ...
A garantia de um parto seguro e respeitoso é um direito humano fundamental

Por Ana Karolayne Chaves Gouveia Santos*, Pedro Cardoso Silva** e Xaman Minillo***

O mês de maio, no qual ocorre a tradicional celebração do dia das mães, é uma oportunidade para discutir os problemas da idealização que frequentemente se atribui à maternidade, notável na expressão “ser mãe é padecer no paraíso”. Nesse contexto, salientamos uma das violências com base em gênero mais ignoradas e naturalizadas: a violência obstétrica. Os casos abundam, afetando milhares de pessoas que gestam durante todo o ciclo de vida reprodutiva.

As ocorrências incluem práticas que variam desde demora no atendimento, falta de informação, realização de procedimentos inadequados ou desnecessários, negação de cuidados até agressões físicas e verbais. Tratam-se de práticas de desumanização e desrespeito à autonomia da gestante, que ferem seus direitos reprodutivos e direitos humanos de forma ampla.

No mês de março, na cidade de Campina Grande (PB), um caso perturbador levantou denúncias sobre negligência e violência obstétrica e trouxe à tona a urgência de entender e combater tais práticas de violência e garantir um atendimento digno e humanizado para gestantes. Nesse caso, a conduta violenta durante um trabalho de parto gerou a morte de um bebê e a perda do útero da parturiente, que também morreu dias depois. A parturiente, que já havia previamente relatado negligência por parte da equipe durante o atendimento antes do parto, teve seu sofrimento ignorado pelos profissionais de saúde. O caso expôs não apenas diversas falhas individuais e institucionais, mas também a naturalização do sofrimento de gestantes, assim como a desumanização no atendimento hospitalar.

O episódio deve ser visto como um chamado para que a sociedade não se cale diante de tais abusos e violências. Infelizmente, esse caso não é um episódio isolado: existem relatos semelhantes que se repetem em todo o país. A negligência e a violência obstétrica manifestam-se das mais diversas formas ao longo do ciclo gestacional, do pré-natal até o puerpério. É um problema estrutural que acomete mulheres de diferentes classes, raças e regiões. Sua prevalência já é notável no fato de que, no Brasil, mais de 90% dos partos ocorrem em hospitais e mais da metade são por meio de cesáreas, as quais podem gerar danos à saúde da gestante e do bebê, e não devem ser realizadas sem justificativa clínica. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que cesáreas devem ocorrer entre 10% e 15% dos casos.

Durante o pré-natal, é comum que seja negado o direito a cuidados adequados, como exames essenciais ou orientações claras sobre o processo de gestação. Durante o processo do parto, as agressões podem ser mais diretas e explícitas, por exemplo: a realização de procedimentos invasivos sem consentimento, a recusa de anestesia mesmo quando é solicitada, a violência verbal em situações de humilhação das gestantes, além de casos nos quais a presença de acompanhantes é vetada. Por fim, durante o período de puerpério, as agressões podem continuar com a omissão de cuidados no pós-parto imediato, como por exemplo a dificuldade de acesso à amamentação assistida ou a orientações básicas sobre os cuidados com o recém-nascido.

Essas diferentes formas de violência praticadas por profissionais da saúde têm como resultado não apenas traumas psicológicos na pessoa que gesta, mas também riscos graves à saúde física da pessoa que gesta e do bebê. Ninguém deve ser submetido a sofrimento desnecessário antes, durante ou depois do processo de dar à luz. Tais práticas não podem ser normalizadas, pois ferem direitos à dignidade, à integridade física, e a autonomia sobre seu próprio corpo.  A garantia de um parto seguro e respeitoso é um direito humano fundamental, e negar tal direito é uma expressão clara da violência de gênero.

Esta realidade alarmante não se restringe ao Brasil. A violência obstétrica trata-se de um problema global. Sua relevância em tal escala foi reconhecida no ano de 2000, quando foram criados os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM. Os ODM compreendem um conjunto de oito objetivos propostos pela Organização das Nações Unidas, com a finalidade de promover o desenvolvimento humano, melhorando a qualidade da educação, saúde, vida e meio ambiente até o ano de 2015. O objetivo número 5 era melhorar a saúde materna, tendo como foco a redução da taxa de mortalidade materna em três quartos.

O governo federal brasileiro chegou a criar programas para contribuir para o objetivo, como o Saúde Mais Perto de Você e o Rede Cegonha. O primeiro buscava melhorar a qualidade no Sistema Único de Saúde (SUS) e o segundo buscava ampliar o acesso e a qualidade do pré-natal; humanizar o tratamento durante todo o processo gestacional (pré-natal; parto; puerpério e atenção integral à saúde da criança).

Infelizmente, apesar dessas ações, o ODM 5 foi aquele em que o Brasil teve o menor êxito. A principal meta do ODM 5 no país era a redução da mortalidade materna para 35 mortes por 100 mil nascidos até 2015, no entanto, o Brasil não atingiu tal meta, ficando com 62 mortes por 100 mil nascidos no ano de 2015.

Encerrados em 2015, os ODM foram substituídos por uma nova agenda global de desenvolvimento: os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Nessa nova agenda, desenhada para ser estendida até o ano de 2030, os ODS trouxeram novos objetivos. A questão de Saúde e o Bem-estar foi contemplada no ODS número 3, estruturado em torno do compromisso de garantir uma vida saudável e de qualidade para todos. O ODS 5, por sua vez, versa sobre a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas. Ainda que seja contemplado na intersecção entre esses dois ODS, o ODM 5, e portanto, a saúde materna, perdeu visibilidade na mudança da agenda de desenvolvimento global.

O termo violência obstétrica foi oficialmente reconhecido pelo Estado brasileiro em 2011, sendo bordado pelo Ministério da Saúde em diretrizes de humanização da assistência. Tal reconhecimento se deu pela necessidade urgente de combater tais práticas violentas, compreendendo-as como uma violação dos direitos humanos das pessoas que gestam. Apesar de tal avanço, persiste a escassez de informações essenciais sobre direitos das pessoas gestantes, a falta de fiscalização em clínicas e hospitais e a impunidade dos agressores, permitindo que tais violações continuem a acontecer. A situação também é impactada pelo regime cultural patriarcal e a naturalização de práticas abusivas – como procedimentos sem consentimento, agressões verbais e intervenções desnecessárias – que fazem com que diversas gestantes sequer reconheçam que foram vítimas de violência obstétrica e a gravidade do que aconteceu.

Para mudar esse cenário e garantir o respeito aos direitos das pessoas que gestam, é necessário implementar medidas que envolvem a capacitação dos profissionais de saúde, o fortalecimento de canais de denúncia, e a conscientização da população de seus direitos sexuais e reprodutivos, seus direitos sobre seu corpo e da importância de denunciar casos de abuso. Números de atendimento, tais como: Ligue 180 e o Disque Saúde 136; e instituições como os Conselhos Regionais de Medicina e Enfermagem são meios disponíveis mais funcionais para receber os relatos de violência e negligência obstétrica.

*Ana Karolayne Chaves Gouveia Santos é graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba, atualmente cursando o seu oitavo período. Integra uma Organização Não Governamental voltada para a inclusão de jovens de baixa renda no ensino superior e também atua como voluntária no projeto de extensão Diálogo Generi, um projeto que visa dialogar sobre questões de gênero nas Relações Internacionais.

**Pedro Cardoso Silva é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba, atualmente em seu quinto período. Faz parte atua na extensão Diálogo Generi, um projeto que visa dialogar sobre questões de gênero nas Relações Internacionais.

***Xaman Minillo é docente e coordenadora do curso de graduação em Relações Internacionais da UFPB, membro do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI/UFPB). Trabalha com temas de políticas sexuais e de gênero, estudos queer e decoloniais, feminismos e ativismos LGBTQ+ africanos e indígenas. Coordena o grupo de estudos de Políticas Sexuais Internacionais – PoliSexI, e é responsável pelo projeto de extensão Diálogo GENERI – Diálogo de Gênero nas Relações Internacionais. Contribui para a promoção da igualdade de gênero na comunidade acadêmica em suas pesquisas, aulas, e como membro do grupo MulheRIs e co-coordenadora da Rede Latino- Americana MulheRIs+MujeRIs.

****Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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