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Xi, ela não andou na linha!*

Umas com as outras, principiamos o poder de acertar o relógio de um tempo que não precisa ser linear

Ângela Hofmann*

De acordo com o processo vivido por Angélica, personagem do livro homônimo da escritora gaúcha Lygia Bojunga, para renascer é preciso voltar para trás.

Angélica é uma cegonha que descobriu ter crescido numa tradição que pregava uma mentira: a de que cegonhas eram as responsáveis por trazerem os bebês humanos para a terra. Embora essa crença trouxesse prestígio, respeito, e até mesmo benefícios materiais às cegonhas era, de fato, uma farsa. Angélica, que já dera seus primeiros passos fora da linha que traçaram para ela, pronunciando suas primeiras palavras a partir de seu próprio desejo – ao contrário do que lhe haviam programado – logo se incomoda com a bandeira apregoada pela família. Se fosse pra fingir ser uma coisa que ela não era, o que a tornava cada dia mais infeliz, ela preferiria não ter nascido. Mas quem era Angélica?

Ela anda diferente da gente.

Ela ri diferente.

  O jeito dela é todo diferente.

  Então é melhor não ter nome começando com lu [como todos os demais irmãos].

  É. Vamos pensar um outro nome pra ela. (…)

Eu quero Angélica [a recém-nascida diz].

Foi aí que surgiu a ideia de fazer o tempo voltar para trás. Seria necessário desnascer. E o ‘tempo’ aceitou voltar para trás: Angélica foi diminuindo de tamanho, diminuindo até caber dentro do seu ovo original. Entrou uma pata e uma asa, a outra pata e… Antes de o ovo se fechar e ela sumir de vez, a comunidade familiar, por fim, sensibilizou-se e uniu-se para puxá-la de volta. Assim, a protagonista retomou sua vida e retornou a crescer. Tão logo partiu em um voo rumo a sua realização, porém longe dali. Para ser a autêntica Angélica.

Provocada por essa personagem bojunguiana, fico pensando sobre como foi, e como continua sendo, para as mulheridades, a possibilidade de desnascer, ou seja, deixar de ser aquilo que se é por efeito de uma produção externa. Artificialmente, vamos recebendo os atributos gerados pelas expectativas de nossos pais, do meio cultural, social e político. Nascer seria botar a cabeça para fora numa realidade tal, e nela começar a existir em conformidade, dançando de acordo com a música, por assim dizer? Mas… qual é a música que está tocando? Cada um pode dançar a mesma música, mas de um jeito diferente? Dá pra trocar a música? Tem que ter uma música?

As mulheridades, no caminho de reencontro consigo mesmas, foram largando um balde aqui, um avental ali, uma vassoura acolá. A ordem do dia foi des-sendo o cesto de roupas sujas, o preparo das refeições diárias, o trabalho mental de organizar a rotina de cada dia da semana em todos os meses dos anos de sua vida com filhos e marido. Uma frigideira voando daqui, e um livro sendo agarrado acolá, seus corpos ganharam a rua, os espaços públicos, os movimentos sociais. Para tantas, a profissão desejada pôde, pé ante pé, ir se desenhando ao se reescrever na existência novamente, no devir do embrião da mulher sem a pré-definição de um nome, um corpo e um futuro. Sem um homem para lhe dizer quem ela é, e para onde deve ir.

Ainda que se quebre os pratos, despeje o balde em cima da mesa, ensope a vassoura no tanque, e batuque as panelas no banheiro, jogar tudo pra cima dará o trabalho de arrumar tudo de volta. Sim? Talvez. Mas não será como outrora. Desnascer traz a oportunidade de traçar destinos políticos, dizer a sua palavra, escrever o livro, a peça de teatro, compor a sua música, o que seja. É não se espantar mais consigo mesma, não tomar parâmetros alheios para conceber-se e ser a mulher que se é. 

Viva Carolina Maria de Jesus, viva Elis Regina, viva Amara Moira!

Viva Janja Lula da Silva, viva Daiana Santos, viva Eliane Marques!

Somos muitas e diversas. Umas com as outras, principiamos o poder de acertar o relógio de um tempo que não precisa ser linear. Mas sim, diferente.

* Frase retirada de um dos diálogos do livro Angélica (1975), como também o trecho citado em destaque, no corpo do texto.

**Ângela Hofmann é escritora, socióloga, mestre em educação.

***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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