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Chantagem de Trump demanda medidas urgentes de soberania digital no Brasil

É preciso reafirmar a independência das instituições brasileiras para agir e responsabilizar empresas que atuam no território nacional, seja lá de onde forem

Por Jonas Valente* e Alexandre Arns Gonzales**

A chantagem de Trump, anunciada na quarta-feira (9), impondo uma taxação de 50% sobre todos os produtos brasileiros caiu como uma bomba sobre as relações internacionais e comerciais entre os dois países. No centro da ofensiva está a pressão contra regulações e decisões judiciais sobre plataformas digitais e grandes empresas de tecnologia estadunidenses. A movimentação escancara a necessidade de medidas emergenciais de soberania digital no Brasil.

Em sua carta a Lula, Trump listou, entre as motivações para a medida, decisões que classificou de “secretas e ilegais” sobre plataformas digitais, ameaçando-as com multas e expulsão do mercado brasileiro. Uma suposta perseguição a Jair Bolsonaro também foi mencionada. Para além da taxação, no âmbito específico das empresas de tecnologia, Trump anunciou uma investigação do Representante Comercial dos Estados Unidos segundo a seção 301, que avalia supostas barreiras comerciais, tarifárias ou restrições digitais.

Na mira da ação estão decisões do Judiciário e necessárias regulações no âmbito do Legislativo e Executivo sobre esse setor. No caso do Supremo, a mais recente decisão mudou o Marco Civil da Internet impondo novas regras para provedores de aplicação no Brasil.. Outras decisões envolveram multas e punições a plataformas estadunidenses, incluindo a suspensão do X por desrespeito à Justiça em 2024. No âmbito do Legislativo, tramita o PL de IA (Projeto de Lei 2.338/2023), propostas de regulação para plataformas digitais e um PL (2331/2022) para impor regras sobre serviços de streaming, entre outras iniciativas sobre temas correlatos. O governo Lula vem afirmando planos de enviar propostas para regulação de serviços e mercados digitais e de taxação de Big Techs

Não é novidade que EUA agem para proteger suas empresas, mas Trump elevou isso a um novo patamar. Ameaças semelhantes miraram o Canadá e a Europa, buscando flexibilizar ou invalidar regulações aprovadas sobre plataformas e sistemas de IA. Analistas apontam que a investigação pode ter um escopo amplo, sobre todo tipo de regulação envolvendo serviços digitais, da decisão do STF à aprovação de uma legislação para o streaming

Reações soberanas

O episódio evidenciou a necessidade de o Brasil reagir em defesa da soberania digital popular e de suas instituições e contra a dependência desses monopólios. Essas empresas ameaçam democracias, concentram poder, controlam o debate público e disseminam desinformação, discurso de ódio e violência política. Elas se aliam à extrema direita para benefício mútuo, como a chantagem de Trump escancara. Contra isso, a soberania digital popular deve ser entendida como a capacidade de povos e da sociedade de controlar e definir as formas de desenvolvimento e uso das tecnologias digitais orientada por direitos, de forma justa, sustentável em benefício das coletividades, promovendo o direito à comunicação e o conhecimento livre. Também implica combater a dependência de grandes conglomerados e governos do Norte Global, como ocorre hoje no caso brasileiro em relação às principais plataformas e empresas de tecnologia.

Em primeiro lugar, é preciso reafirmar a independência das instituições brasileiras para agir e responsabilizar empresas que atuam no território nacional, seja lá de onde forem. Assim, ainda nesta quarta-feira (9) Lula divulgou resposta em que reafirma a soberania das instituições brasileiras e limites às plataformas digitais. “No Brasil, liberdade de expressão não se confunde com agressão ou práticas violentas. Para operar em nosso país, todas as empresas nacionais e estrangeiras estão submetidas à legislação brasileira”. Isso não significa que decisões do Supremo não sejam passíveis de crítica (como apontamos em coluna anterior aqui no Brasil de Fato), mas qualquer questionamento deve se dar nos marcos do ordenamento jurídico brasileiro, e não a partir de um arroubo imperialista. O Judiciário e as cortes não podem balizar suas decisões por ameaças de outros países. 

Mais ainda: legisladores, autoridades e a sociedade civil não podem se dobrar a chantagens para manter todo um setor econômico imune ou pouco regulado. O PL de IA (PL 2.338/2023), aprovado pelo Senado em 2024, pode ser um importante avanço, a despeito de limitações (como a permissão do uso de reconhecimento facial e a retirada de regras sobre integridade da informação). A chantagem fortalece o lobby de empresas de tecnologia que tentam travar sua tramitação na Câmara. Uma regulação protetiva e democrática para IA é fundamental no momento em que o uso dessa tecnologia cresce enormemente no Brasil.

O mesmo vale para a regulação de plataformas. A aliança entre essas empresas e a extrema direita enterrou o PL 2630/2020, que estava pronto para votação em plenário em 2023. O julgamento do STF tornou ainda mais urgente a aprovação de uma legislação que estabeleça regras claras e um modelo de fiscalização e aplicação da Lei. Neste sentido, é urgente o envio dos projetos de lei sobre serviços e mercados digitais por parte do Executivo e sua tramitação antes das eleições de 2026, sob pena de o pleito ser ainda mais determinado por esses monopólios digitais. A aliança dessas empresas com a extrema direita tem ficado cada vez mais escancarada, como mostrou a Meta na mudança de suas políticas no início do ano

Políticas de soberania digital popular

Entretanto, a regulação somente não é suficiente para assegurar a soberania digital do Brasil. Soberania digital popular implica o desenvolvimento e articulação de infraestruturas, serviços e redes digitais não somente nacionais, mas que sejam construídas a partir da sociedade para atender a seus interesses. Não é isso o que temos visto. Um exemplo é o estudo recente que contabilizou mais de R$ 10 bilhões em contratos do Estado brasileiro com big techs em um ano. 

No dia em Trump anunciava sua chantagem, terminava em Brasília o primeiro encontro Soberania Já, que reuniu diversos movimentos sociais, coletivos de cultura digital, pesquisadores e entidades da sociedade para apontar caminhos para a construção de um plano para o tema. O encontro mobilizou coletivos e movimentos da cultura digital, hackativismo, sindicatos, movimentos sociais e organizações pelo direito digital, em interlocução com parlamentares e setores do governo federal. 

O encontro representa uma reação importante da sociedade brasileira às ofensivas que as grandes empresas de plataformas digitais têm operado contra o país. No cerne da mobilização esteve a elaboração coletiva de um Plano Nacional de Soberania Digital. Foi dado início à construção deste plano, que tem o objetivo de definir os eixos estratégicos. A regulação sobre os serviços e mercados digitais é aspecto imprescindível e deve estar acompanhada por políticas que promovam investimentos e desenvolvimento em redes e centros de dados comunitários; fortalecimento das universidades e institutos federais, para construção de centros de dados federados e capacidade de processamento de dados para pesquisa; usar as empresas públicas para incentivar o desenvolvimento destas infraestruturas e sistemas públicos, sem servir de incubadoras para produtos e serviços das grandes empresas de plataformas digitais, como Amazon, Microsoft e suas equivalentes.

A ofensiva do presidente estadunidense contra o Brasil negrita os interesses que estão em jogo e oferece uma oportunidade histórica para o governo e o povo brasileiro: ou levamos a sério nossa tarefa de fortalecer nossos marcos jurídicos e ação institucional para garantir nossa soberania e democracia, ou ficaremos à mercê da ganância patrocinada pelas big techs em conluio com o viralatismo da extrema direita nacional. Os próximos dias prometem.

* Jonas Valente é pesquisador e integrante do DiraCom

** Alexandre Arns Gonzales é pesquisador bolsista do Ipea e integrante do DiraCom

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