Renan Vinícius Alves Ramalho
Sou da turma dos que leem textos pessoais nas redes sociais com uma ponta de vergonha alheia. Pois bem, hoje eu serei o promotor desse sentimento confuso de curiosidade e desconforto.
Sou filho de pai branco e mãe negra – a “nega” como chama meu pai. Cresci ouvindo que sou a cara dela. Um dia um funcionário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entrou na nossa casa e perguntou a minha cor. Respondi que era “moreno” ao que ele emendou “pardo, então”.
A partir desse dia passei a me dizer “pardo” sempre que o assunto era sério, mesmo desconhecendo a complexidade do tema. Mais tarde percebi, inclusive, as implicações regionais disso – seria eu pardo na Bahia? No Rio de Janeiro? No Maranhão? Em Aracaju? Mas uma coisa sempre foi evidente a mim: eu não era branco, assim “como a minha mãe”, a neguinha do meu pai.
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Aqui os psicanalistas fazem a festa; mas sem preconceito com os leitores de Freud, tenho até amigos que são. Dele, meu pai, ouvia que herdara, por procuração do meu avô, a letra inclinada, o temperamento difícil e o gosto por bicicletas – eu sei… eu sei… muitas projeções aqui. Eu sabia a que mundo pertencia quando entrava numa loja e sentia os olhos dos seguranças; quando pediram para esvaziar os bolsos (o que me fez lembrar o relato de minha mãe ao ser injustamente levada para “a salinha da segurança”); quando uma vizinha correu com medo me pedindo desculpas em seguida por “não ter me reconhecido” (bem, algo ela reconheceu); ao ser requerida a apresentação de documentação ao entrar em um condomínio sob a alegação de ser procedimento padrão, mesmo diante da flagrante entrada de outros visitantes que não apresentavam documentos.
Ainda em tempos pré-cotas, na matrícula do curso de História me declarei “pardo” e raspei a cabeça “morena”. Para minha surpresa, meu cabelo afro não quis entrar comigo na universidade. Por algum efeito da idade ou por outro motivo que eu desconheço, meu cabelo raspado passou a crescer ralo e liso. Foram alguns anos tendo que repetir aos incrédulos que não, não tinha feito chapinha; que meu cabelo apenas mudou.
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Os anos se passaram e, tal como o meu cabelo, minha cor parece não ter se identificado com o espaço que eu passei a ocupar. No mestrado vivi dois anos de leituras e escrita, reduzindo o contato com os pontos de ônibus, vendo menos o sol. Empalideci. O que me tornei? Um pardo pálido de cabelo liso e diplomado? Na época isso nem de longe era uma preocupação – talvez, no máximo, uma preocupação estética.
Em 2016 passei no concurso para professor. Na inscrição, tal como ao entrar na faculdade, lá estava a lacuna a ser preenchida, mas dessa vez mais sofisticada: “[✓] negro (preto ou pardo)”. Preenchi como sempre me vi, como escrito nas páginas da minha memória e identidade. Concorri pelas cotas. Certo dia um passarinho cantou uma farpa sobre isso. Talvez uma frase displicente, não necessariamente mal-intencionada. Ouvi aquele canto uma primeira vez como ofensa. Mas a melodia não parou de tocar e se repetir no meu pensamento ao ponto do se transformar em notas de culpa. Seria eu um impostor? Será que me enganei; que estou ocupando um lugar que não tenho direito? Bem, até hoje não concordo com o que disse o passarinho. Mas nunca esqueci aquela melodia. As notas de culpa ainda ressoam. São as complexidades da realidade étnica do nosso país – os tons cinzentos desse debate.
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Porque há tão pouco “negro” nesse texto? Talvez eu ainda tema os fiscais de cor e memória. Talvez eu tema os arautos da meritocracia, dos que pensam que o Brasil é um país de harmonia racial. Ou talvez, principalmente, eu ainda precise fazer as pazes com minha identidade. Eu, negro.
*Renan Vinícius Alves Ramalho é professor de História – IFRN e Mestre em História – UFRN.
**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.