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Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radic...ver mais

‘Nós escutamos vocês’: saberes de crianças e jovens por justiça climática

As contribuições positivas de crianças e jovens para a sustentabilidade ambiental e a justiça climática necessitam ser reconhecidas nos diferentes espaços

O título principal deste artigo foi retirado do último parágrafo do Comentário Geral nº 26, de 2023, do Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas, documento jurídico que trata dos direitos das crianças ao meio ambiente e os aspectos relacionados aos impactos das mudanças climáticas. No parágrafo 115, há uma reunião de frases ditas por crianças em atividades conduzidas pelo Comitê para a construção do Comentário Geral, sendo que uma delas indica: “Nós escutamos vocês; aqui está o que vamos fazer a respeito deste problema”. 

Meu filho, de 5 anos, há algum tempo tem reclamado com um restaurante perto de casa, devido a churrasqueira emitir muita fumaça. Sempre que passamos por lá, ele grita: “vocês têm que parar com isso! Vocês estão poluindo o ambiente!” O que conecta meu filho com as centenas de crianças que participaram da elaboração do Comentário Geral é uma questão: a consciência climática que emerge desde muito cedo nas novas gerações e a decorrente preocupação com o presente e o futuro do planeta Terra dada a avassaladora velocidade das mudanças climáticas e a contraditória atuação de adultos agentes políticos e privados.

Com suas indignações e ações, as crianças e jovens têm produzido saberes anti-adultocêntricos e interseccionais para indicar as soluções estruturais no enfrentamento às mudanças climáticas e na promoção da justiça climática. Saberes esses que interpelam constantemente o compromisso de adultos agentes em assumirem a necessidade de profundas alterações na sociedade global e no seu modelo de produção e consumo capitalista para não apenas evitar que se ultrapasse 1,5ºC de aquecimento global acima dos níveis pré-industriais, mas que caminhe por horizontes mais ambiciosos de sustentabilidade socioambiental e adaptação climática, tendo por centralidade os impactos desiguais sofridos pelo Sul Global e a necessidade, cada vez maior, do Norte Global assumir sua responsabilidade ética, jurídica e financeira pelos estragos decorrentes da proliferação do uso de combustíveis fosseis e do descaso com a natureza.

Voltando ao Comentário Geral nº 26/2023, seu conteúdo, produzido por meio de consulta à mais de 16 mil crianças, de 121 países, demonstra a capacidade de adultos aprenderem com crianças e jovens, em como estruturar uma normativa para melhor recepcionar a interpretação do meio ambiente como direito da criança. A síntese do diagnóstico que relaciona as crianças com as mudanças climáticas está no parágrafo 40 do documento, ao indicar que 

“As crianças são afetadas de forma desproporcional pelos efeitos das mudanças climáticas, inclusive a escassez de água, a insegurança alimentar, as doenças transmitidas por vetores e pela água, a intensificação da poluição atmosférica e os traumas físicos associados a eventos tanto súbitos quanto de longa duração.”

Por outro lado, no parágrafo 31, está o cerne do papel que o Estado precisa adotar para valorizar as contribuições advindas das crianças, observando que “os Estados devem promover, reconhecer e apoiar a contribuição positiva das crianças para a sustentabilidade ambiental e a justiça climática como um canal importante de envolvimento civil e político, por meio do qual as crianças podem negociar e defender a realização dos seus direitos – inclusive seu direito a um ambiente saudável – e responsabilizar os Estados.”

As contribuições positivas de crianças e jovens para a sustentabilidade ambiental e a justiça climática necessitam ser reconhecidas nos diferentes espaços de socialização de tais sujeitos, e tendo por agentes obrigados não apenas o Estado, mas, igualmente, a sociedade e a família, fortalecendo o legado da corresponsabilização dos diferentes agentes esculpidos no paradigma da proteção integral, incluindo, no campo sociedade, as empresas e os meios de comunicação.

Em 2023, durante a Conferência das Partes da Convenção sobre o Clima (COP-28), ocorrida em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, a Youngo, um grupo de crianças e jovens que atuam nas Nações Unidas para efetividade da Convenção sobre o Clima, lançou a Declaração Mundial da Juventude: Declaração por Justiça Climática, com contribuições de crianças e jovens de 150 países.

No preâmbulo, as crianças e jovens que atuam como ativistas climáticas explicitam uma “verdade inconsequente” que não podemos mais desconsiderar, a de que “[s]omos a última geração que pode tomar medidas decisivas para manter 1,5ºC a nosso alcance e conservar o planeta em um espaço de funcionamento seguro e justo para as gerações atuais e futuras” (tradução nossa). Isso me lembra que, novamente, meu filho, de 5 anos, pode estar, talvez na sua fase adulta, tendo que discutir não o enfrentamento das mudanças climáticas, mas a não extinção da humanidade, a depender de como estiver o nível do aquecimento global.

No tópico sobre justiça climática, intencionalmente articulado ao tema dos direitos humanos desde o título (justiça climática e direitos humanos), a declaração reforça a necessidade de que a garantia da justiça climática intergeracional só pode ser feita com o cumprimento do limite de 1,5ºC, e que uma ação insuficiente dos Estados para assegurar esse limite gera uma violação aos direitos humanos e aos princípios da justiça climática, devendo os Estados realizar seus trabalhos em colaboração e de forma equitativa com crianças e jovens nos processos de tomada de decisão sobre as políticas climáticas e as políticas de direitos humanos. 

Assim, e uma vez mais, as crianças e jovens nos interpelam dizendo, a nós adultos: “nada sobre nós, sem nós”; nada sobre políticas climáticas sem que nós, crianças, adolescentes e jovens, sejamos participes nas decisões a serem tomadas e nas ações a serem realizadas. 

Sobre isso, o diagnóstico Crianças, Adolescentes e Mudanças Climáticas no Brasil, produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em 2022, estrutura como uma das recomendações, a quinta, a necessidade de “[a]ssegurar que crianças, adolescentes e jovens tenham garantida, protegida, e estimulada sua participação nas esferas de debate, decisão e implementação de políticas públicas relacionadas ao meio ambiente e à crise climática.”

Para que a participação de crianças, adolescentes e jovens possa ocorrer de forma efetiva e qualificada, é necessário estabelecer espaços de participação com linguagem, metodologia e ambiente que sejam atrativos e adequados ao público infantojuvenil, considerando, igualmente, os aspectos de gênero, acessibilidade, etnicidade, entre outros. 

Isso se mostra mais desafiante de ser concretizado com as crianças, incluindo as da primeira infância, pois são as que possuem menos condições de acesso aos espaços de participação, inclusivo por impossibilidade de partida de estarem presentes, haja vista a dependência da presença e do deslocamento por pais ou responsáveis, além das “limitações” etárias impostas pelas equipes de organização dos eventos. 

Ainda assim, já existem iniciativas que tem estruturado metodologias de escuta de crianças sobre suas percepções das mudanças climáticas, a exemplo das oficinas conduzidas por Ana Cláudia de Arruda Leite e Gandhy Piorski, com crianças de 4 a 12 anos, em cidades localizadas nas diferentes regiões do Brasil, e que engajou as crianças a partir do fomento e do respeito aos seus mundos imaginários e a expressividade por intermédio de linguagens para além da oral, como a relacionada ao corpo e às artes.

Na Tailandia, Jill Lawlern e Mahesh Patel abordam a experiência de crianças terem desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento de um programa de redução do risco de desastres, com a criação de planos de evacuação de suas escolas e a elaboração de mapas de riscos climáticos em âmbito comunitário que subsidiaram a estruturação de um plano de preparação aos efeitos climáticos em suas comunidades.

Ao mesmo tempo, é importante disponibilizar processos formativos que possibilitem o acesso à informações sobre o meio ambiente, as mudanças climáticas e as perspectivas de direitos humanos, em especial de direitos de crianças e jovens, necessárias para o entendimento sobre o assunto, e as formas de posicionamento técnico nos espaços de tomada de decisão, no âmbito local até o global, com especial atenção à inserção desse conteúdo como parte do currículo das escolas, isto é, exercitando a educação ambiental.

O reconhecimento de crianças e jovens como sujeitos de direitos e como público impactado de forma desproporcional pelas mudanças climáticas, necessita, cada vez mais, ser complementado pelo reconhecimento de tais pessoas como sujeitos políticos e sujeitos de conhecimento, duas bases para promover e valorizar a capacidade interventiva e imaginativa dos grupos não-adultos de reivindicar perspectivas outras de justiça climática e de garantia de direitos humanos, em bases anti-adultocêntricas e interseccionais. 

O que nos cabe, a nós, adultos, é exercitar a escuta sensível e respeitosa aos seus saberes e estruturar espaços de tomada de decisão que sejam adequados à participação de crianças e jovens, e ambiciosos nas decisões a serem tomadas sobre justiça climática.

*Assis da Costa Oliveira é professor da Universidade de Brasília (UnB), vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares com atuação no Núcleo de Estudos da Infância e da Juventude e no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas para Infância e Juventude. Membro do Grupo Temático Direitos, Infâncias e Juventudes do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Doutor em Direito pela UnB. Mestre e graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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