Pacífico diz-se de algo ou pessoa que almeja a paz. É também um dos oceanos que banha o continente americano. Do Atlântico ao Pacífico, as travessias transatlânticas na nossa história forjaram a produção de abismos na nossa constituição enquanto povo Amefricano. E, por que não dizer, a produção de subjetividades que nas suas tessituras rasgam as possibilidades de comunalidade, mais do que fazem comum?
É uma relação que já nasce rachada e marcada pela distinção dos seres e pelo ódio racial, parece mesmo uma relação abissal cortada pelo mar de memórias, sangue, choro e sal. Como diz Édouard Glissant, em Poéticas da Relação: “Os povos se constituíram, por mais que esquecessem o abismo, por mais que soubessem imaginar as paixões daqueles que afundaram nele…”.
Dessa travessia, desse mar-abismo nada pacífico ainda imaginamos as paixões dos que afundaram, mas também as violências coloniais de piratas, aliançados com a igreja e seu cristianismo exterminador e o poder de Estado totalitário-monarca de outrora. Que seguem, ainda, vivificados nos tempos de agora que se repetem como um navio fantasma, sempre a navegar no mar da história. Até rimou! Uma poética mortífera das relações é o que se pode dizer desse empreendimento colonial e seus efeitos, que atravessam os tempos e se atualizam nas relações complexas entre estado, igrejas e crimes de toda ordem.
E, nas ondas de ódio, o monumento de Mãe Stella de Oxóssi sofreu mais um ataque. Havia sido queimado em dezembro do ano passado e recentemente recuperado. Dias depois de sua reinauguração após restauro foi alvo do ódio às religiões de matrizes africanas. Pacífico era também o sobrenome de uma mulher negra, liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares e Yalorixá.
Mãe Maria Bernadete Pacífico foi executada com mais de 20 tiros no terreiro da comunidade em que vivia. Um de seus filhos foi assassinado anos antes com a mesma crueldade. A lista de quilombolas e indígenas assassinados no Brasil só cresce. Alguns acontecimentos, como estes, parecem formar uma teia de significantes que repetem o abismo transatlântico experimentado pelos nossos antepassados quando atravessaram o mar. Parece que estamos continuamente repetindo essa travessia abismal sem elaboração dos atos de barbárie que insistem em nos assombrar e tomam muitas formas.
A maior das tecnologias coloniais foi criar matrizes para perpetuar a relação de morte com tudo que tem vida. A barca colonial continua navegando, açambarcando e destruindo tudo que tem relação com a terra, com a diversidade de seres, com tudo que cria vínculos e forma comunidades. O sujeito empresa-escravo de si tem se tornado cada vez mais individualista, narcisista, destruidor de terra e com medo de envolver-se e formar vínculos com outros sujeitos. Isto está presente em todas as relações que tecemos, nem as amorosas escapam.
O ódio parece ter se tornado o afeto aglutinador de pessoas adoecidas com este modo de viver cada vez mais desagregador, cada vez mais desvinculante da nossa relação com a terra e com os outros e cada vez mais delirante. E tudo que não conecta com este modo de vida torna-se alvo de aniquilação, extermínio. É o que tem acontecido com as comunidades e povos tradicionais como os indígenas e suas aldeias e os terreiros de candomblé e quilombos.
Os terreiros de candomblé seguem resistindo, sendo templos de paz em tempos de ódio. São pelos contos crioulos do Mestre Didi, como “A fuga do tio Ajayi”, que sabemos que é a necessidade de se juntar para cultuar nossos Orixás que faz um Quilombo. É fugindo da barbárie que criamos novas rotas e formamos um povo livre. Que do agito do oceano nada pacífico encontremos os mares de liberdade.