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Joias Crioulas: marca de uma economia sagrada e clandestina da liberdade

Essas mulheres, joias crioulas, inventaram uma economia complexa que não se resume à moeda, tampouco à vaidade

Tive a oportunidade de ver a exposição Dona Fulô e outras jóias negras no Museu de Arte Contemporânea de Salvador. Saí de lá dizendo que moraria na exposição, não fosse a sensação estranha que sinto nestes palacetes e casarões coloniais. Tenho impressão de que os espíritos que já viveram nestes lugares fazem aparições quando tudo está apagado. Só de pensar dá arrepios.

A exposição é sobre as joias crioulas. Sobre como estes adornos contam as histórias de mulheres negras forras e ganhadeiras e o quanto podemos aprender com nossas ancestrais. A primeira coisa que a exposição provoca a pensar é a restituição do nome das mulheres negras na história deste país. Uma rasura nos retratos em que aparecem como anônimas, como figuração de uma fotografia em que são tomadas como objeto exótico por quem as retratou.  Em determinado momento, fotografadas e generalizadas como “Negras da Bahia”, em outro, elas mesmas encomendaram suas fotos e “deram seu nome”. 

Não são meras fotos, estão posando para lentes ousadamente com suas indumentárias, adornos e objetos carregados de significados. Marcando suas posições sociais para seu povo, status econômico, identidade e resistência política. Num período em que uma carta régia proibia de vestirem-se assim tão portentosas, uma espécie de segregação racial pelas roupas. Isso dá pano pra manga… refletir as bases racistas da moda, o que vira tendência, o que é apropriação cultural, quem é barrado e onde pelo que veste. Quem é autorizado a vestir o quê, como, quando e onde. 

Isso me fez lembrar da brilhante defesa do advogado Hédio Silva Jr. no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre sacrifícios de animais em cultos de matrizes africanas. Ele começa sua defesa falando dos sapatos de couro daqueles que se comoviam com a sacralização de uma galinha de macumba, mas não se comoviam com a carnificina promovida pelo agronegócio e nem a chacina de jovens negros de periferia. Escancarando a hipocrisia da branquitude jurista. Matar boi pra satisfazer a gula em churrascarias e fazer sapato pode, pra liturgia e alimento dos povos de santo, não pode.

Voltando às joias que deram seu nome pela libertação, elas foram corajosas em subverter as leis. E não só fizeram uma revolução estética com suas roupas e joias, elas criaram uma economia paralela com seus mercados de rua e escambos. Elas já estavam no espaço público e doméstico realizando trabalhos reconhecidos tardiamente pelo feminismo branco (ainda tenho dúvidas). Como quituteiras, lavadeiras, mercadoras e ganhadeiras, nossas ancestrais fizeram o dinheiro circular entre negros, talvez tenham inventado o primeiro black money da diáspora. As joias eram adornos feitos por ourives clandestinos, mas também viravam moedas na economia clandestina da liberdade. A economia à serviço da liberdade e não o contrário. Não se compra por comprar, não se consome por consumir. 

Oxum quando lava suas joias antes de lavar seus filhos, não é só cuidado de si, é cuidado com a própria comunidade. E cuidar das joias para essas mulheres era não só fonte de acumulação de riqueza e estratégia para a compra da sua liberdade e de outras pessoas negras escravizadas. Era também a afirmação de suas origens africanas, de sua religiosidade, cujo sentido de fortalecimento de um povo fertilizava o sonho pelo fim da escravidão e a criação de quilombos. Pelas irmandades e terreiros, nossas ancestrais deram seu nome na história. Afirmaram a matripotência em Améfrica. São elas, também mães pretas, que dão o nome do pai, como dizia Lélia González. E aqui me arrisco a dizer (fruto para outras análises), que o pai é o Estado branco estuprador e escravizador. A lei racial que não só emascula/emula os homens negros escravizados como também suas funções paternas. Aqui fica uma brecha para pensarmos sobre masculinidades negras emasculadas/emuladas em Améfrica e os restos de branquidão que sustentam um modo de produção subjetiva de homens negros na contemporaneidade. 

Essas mulheres, joias crioulas, que entrecruzaram culturas em um estilo de viver, vestir, trabalhar e resistir, inventaram uma economia complexa que não se resume à moeda, tampouco à vaidade. É uma economia afetiva pelo poder de cuidar e por amor à liberdade capaz de sustentar insurgências. Eu as reverencio, posto que sagradas são.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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