Me lembrei de uma conversa com colegas de mestrado. Estávamos almoçando no restaurante universitário. Escutei com uma certa graça que os europeus haviam criado guerras e conflitos por causa de comida. Nunca pensei que o âmbito gastronômico pudesse ser decisivo na invenção de guerras. Eis aqui a boca e o estômago nas decisões do mundo. De fato, as grandes cruzadas e expansão marítima se devem em grande parte ao comércio de alimentos e condimentos fora do continente europeu. A disputa por mercados de comida e outros artigos se complexificou, a ponto de se estabelecer um processo paulatino de subjugação de povos, acirramento de conflitos territoriais e a captura de pessoas para serem escravizadas no inventado continente americano, as Índias.
Poderíamos dizer que o sujeito europeu gozou e continua gozando na pulsão oral. O seu prazer concentra-se na boca através da comida e da língua, da nomeação de outros sujeitos que esta língua constrói diferentes de si mesmo. Não é à toa que nomearam de negros e indígenas, povos que consideraram estranhos e primitivos. Enquanto instância psíquica de sujeitos amefricanos, o gozo oral continua como funcionamento ou lei.
A europa é uma boca que come tudo, uma comilança que aniquila o outro e não assimila, não digere. Uma antropofagia que vomita, segrega o que não é idêntico. Lélia González já nos alertava sobre o mecanismo da negação como constituinte da nossa identidade como povo brasileiro de uma Améfrica, que tenta esconder o racismo proveniente do período de colonização e escravização, mas deixa escapar de várias formas tão presentes e corriqueiras nas relações cotidianas e institucionais.
Sendo um povo cuja subjetividade resulta do encontro entre as matrizes europeias, africanas e indígenas, parece válido pensar que cada matriz dessa é uma instância psíquica com suas próprias leis e funcionamento constituindo a nossa subjetividade. Mesmo dentro do discurso duro do colonizador, conseguimos inventar uma língua, o pretuguês. E criar formas de libertação de um Ideal de Eu que nos aniquila. Inventamos a Representatividade. E precisamos fazê-lo para quebra de correntes antes de ferro, hoje existenciais. De um certo modo, quebramos parte da corrente de significantes que nos aprisionava num lugar de subjugação e desumanização. Exaltar personalidades negras da nossa história tem recuperado a memória da resistência de nossos antepassados e ancestrais, tem nos feito investir na pulsão de vida mais do que na pulsão de morte.
Pois bem, tenho escutado, assim como também proferido, que “representatividade importa” com um certo estranhamento. Do mesmo modo que concordo com ela, me desacomodo. Já que há uma espécie de senso comum sobre o que significa representatividade, mesmo que algumas pessoas não saibam conceituar. Pela afirmação de uma negritude, temos provocado mudanças no modo como nós, pessoas negras, temos nos percebido e como pessoas não negras também. Invertemos os polos, nos vemos com beleza e potência.
Mas, como toda e qualquer invenção, não temos controle dos contornos, das formas que ela pode ganhar. Quando Einstein criou a teoria da relatividade, segundo a qual dois referenciais diferentes oferecem perspectivas diferentes de um mesmo fenômeno, e simbolizada na fórmula E = m.c², jamais poderia imaginar que seria usada para criar a bomba atômica que destruiu Hiroshima e Nagasaki. Achar que a invenção se manterá imutável, inalterada e não oferecerá riscos, não se metamorfoseará em algo que pode também se voltar contra a própria ideia que gerou a invenção, me parece ingênuo e cai no sentido único, universal da mentalidade moderna racional branca.
Então, me parece que o perigo frente a essa invenção chamada Representatividade é torná-la algo tão essencial, tão homogênea que o sujeito torne-se algo subsumido na própria ideia de representatividade. É como se ao invés de substituirmos o Eu Ideal pelo Ideal de Eu, estivéssemos retrocedendo à onipotência narcísica das figuras parentais, só que agora deslocada para figuras que remetem a um modo de ser negro ideal. É na constituição do Ideal de Eu que o sujeito articula um discurso sobre si mesmo, se faz na linguagem. E no Eu Ideal há uma completude absoluta, não é possível posicionar-se, dizer-se.
Neste caso, parece-me que o sujeito da Representatividade pode ser colocado neste lugar de objeto de amor e admiração do Eu Ideal. E o sujeito que investe a libido neste objeto, se esvazie de um discurso sobre si mesmo, sem mover-se pelo próprio desejo, sendo abocanhado pelo desejo do outro, repetindo uma história que lhe é estranha, aprisionando-se nela e não escrevendo a sua.
E representatividade, sendo aquilo que foi criado para abarcar uma diversidade de sujeitos, afetados por desigualdades estruturais, integrando-os a uma pauta em comum que atravessa as histórias destes, acabe sendo tornada também instrumento de divisão e discórdia. Como o que tem acontecido com a “parditude”. Estas são algumas questões a serem analisadas sobre como a representatividade pode ganhar formas as mais diversas.
Uma outra questão que me ocorre é: será que a representatividade pode se constituir também em uma negação? Já que o discurso “Se você não se parece comigo eu te cancelo, eu te aniquilo, eu te destruo, eu vomito você”, parece responder ao que “não representa”?
Alguns fatos nos convidam a pensar no assunto. Isso aconteceu já faz tempo, mas parece ilustrar bem a questão levantada. Duas estátuas foram queimadas, se trata do mesmo fenômeno com motivações e perspectivas bem diferentes. O que causou um certo espanto e indignação foi a posição da mídia hegemônica, à época, em cada um dos casos. Como se pode ver, o tratamento dado ao assunto escancarou quem são os ícones, ou melhor, totens legitimados e autorizados a representar o povo brasileiro.
No primeiro caso, trata-se da estátua do Borba Gato, monumento de um homem branco, genocida e estuprador de mulheres, descendente de colonizadores, sequestradores, invasores, ladrões de terras e riquezas, torturadores e inventores das mais delirantes invenções para aplacar o vazio de uma fome insaciável. Só de imaginar os terrores que cometeram, dá mesmo indigestão.
A estátua foi incendiada por integrantes do movimento Revolução Periférica que provocaram um debate necessário sobre a história e memória de pessoas negras e indígenas neste país, tornando evidente as tentativas de apagamento do protagonismo de tais povos nas narrativas sobre a formação do Brasil.
O ativista Paulo Galo, homem negro e periférico, foi preso. Rapidamente foi criminalizado e penalizado, uma espécie de atualização midiática do pelourinho, que era uma coluna de pedra ou de madeira onde se prendia pessoas escravizadas sentenciadas para serem castigadas. A comoção e repercussão nas grandes mídias foi imediata e a resposta ao ato também, mostrando nitidamente o racismo nosso de cada dia e os ícones clamados para representar a nossa nação.
Já no segundo caso, incendiaram a estátua de Mãe Stella de Oxóssi. Não escolheram um dia qualquer para a queima. Era 4 de dezembro, dia de Yansã para os terreiros de candomblé e Santa Bárbara para os católicos. Uma data importante de fundamentos religiosos e fé para os seus adeptos. Não foi a primeira vez que o monumento tinha sido alvo de depredação, de racismo religioso. Só que desta vez o estrago tinha sido tão grande que a estátua foi removida para ser recuperada. Porém, o artista plástico que a esculpiu, Tatti Moreno, já não estava entre nós.
Não tivemos a mesma comoção e repercussão nas mídias, as notícias sobre as investigações do ocorrido não foram tão expressivas. Não fosse pela atuação do movimento negro, certamente cairia no esquecimento. As instituições policiais reproduziram o racismo ao não dar a mesma importância e celeridade ao caso, como ocorreu com a estátua de Borba Gato. Algo a se estranhar quando se tem investidas de igrejas evangélicas nas corporações militares e em funções parlamentares levando adiante, ao que parece, um projeto político-religioso de criar seus exércitos e instituir suas próprias leis. Outra “colonoevangelização”.
A estátua não tinha o mesmo peso que a de Borba Gato, não era tão inquebrantável quanto a imagem de um homem branco numa sociedade colonizada. Não foi qualquer estátua e não foi qualquer mulher. Se tratava de um monumento cultural que representa não só as religiões de matrizes africanas mas, também, a história do povo negro em diáspora, a luta pela liberdade de pessoas escravizadas que ergueram esse país com sangue, suor e lágrimas. Foi a imagem de uma mulher preta de terreiro, lugar de cuidado e de resistência política.
Mãe Stella foi a quinta Yalorixá do terreiro Ilê Axé Opô Ofonjá fundado em 1910 em Salvador. E era uma das mais importantes Yás do país. Foi recebida com honrarias por países africanos, recebeu títulos e comendas importantes e ocupava uma cadeira na Academia Baiana de Letras. Sua produção intelectual difundiu os conhecimentos sobre os terreiros e os orixás.
O que fizeram com sua estátua é a manifestação do ódio à mulher preta, mas, sobretudo, diz muito de nossa neurose. As estátuas de Borba Gato e de Mãe Stella são como totens que representam a relação mítica que temos com o pai e a mãe primordiais da formação de um povo amefricano. Para Lélia González, a mulher preta funda uma tradição simbólica na nossa formação subjetiva. Porque é esta mulher que exerce a função materna na relação com os filhos da casa grande, os brancos. Ela que não só amamentou, mas deu amor e transmitiu uma língua, o pretuguês.
Na resolução do complexo edípico, a criança tem seu desejo de amor pela mãe barrado pelo tabu do incesto, e é aí que a criança, a partir da repressão original, se identificará com um dos pais, formando um Ideal de Eu e investindo suas pulsões amorosas em outros objetos. Mas, pense aí como acontece esse processo numa sociedade escravocrata e ainda colonial como a nossa!
O sujeitinho nomeado branco vê seu desejo pela mãe impedido, só que esta mãe é preta. O sujeito é barrado pelo tabu primordial do incesto. Esse desejo de amor pela mãe preta é negado, deformado e transformado em ódio, e esse ódio dá formas ao racismo, já que numa sociedade colonial e escravocrata a cultura assenta o sujeito branco como sendo de uma raça superior. A racialização e o racismo são a lei que lhe impede de estabelecer uma relação não violenta com uma mulher negra. E essa raiva que não é autoinfrigida é projetada na mãe preta, na mulher preta e em tudo que seja associado a ela. Os estupros que o Borba Gato cometeu parecem responder a esse afeto não elaborado de tomar o corpo do outro como quem suga as tetas da mãe, do desejo de amor proibido e raiva pela mãe preta.
Quantas lágrimas e leite derramado. Oyá nos proteja!
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.