Por João dos Reis Silva Júnior
A introdução da inteligência artificial na universidade pública não é neutra. Em países dependentes, amplia o paradoxo da modernização conservadora descrito pelo sociólogo brasileiro Francisco de Oliveira: a inovação que não rompe desigualdades. Universidades periféricas importam algoritmos, não controlam códigos, não definem critérios, confirmando sua inserção subordinada na divisão internacional do trabalho.
O problema é também temporal. A reorganização do trabalho mostrou que o capital captura o tempo de vida, virando-o tempo de trabalho. A IA acelera tarefas, mas o tempo “liberado” é recapturado pelo produtivismo: mais artigos, mais relatórios, mais prazos. A financeirização antecipa o futuro e o transforma em ativo presente; o professor é fiador simbólico dessa dívida. O valor se autonomiza, convertendo a produção acadêmica em sinais que circulam como mercadoria, desconectados de seu sentido social.
As consequências recaem sobre o corpo docente. A precarização estrutural corrói a autonomia e transforma o trabalho em engrenagem de reprodução da dependência. Softwares de vigilância avaliam originalidade e desempenho, instaurando lógica de controle permanente. O reconhecimento mediado por algoritmo é classificação, não reconhecimento.
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A pressão adoece. Crescem casos de ansiedade, insônia, depressão e burnout. Dados recentes apontam que mais da metade dos professores universitários já apresentou algum sintoma psíquico nos últimos dois anos e um em cada três necessitou afastamento temporário. Estudos indicam aumento de licenças por transtornos mentais acima de 60% em dez anos. A média de horas semanais ultrapassa 50 quando somadas atividades invisíveis como correção de provas e reuniões noturnas. Essa sobrecarga empurra muitos à exaustão e amplia o uso de ansiolíticos. O descanso se dissolve em e-mails e revisões automáticas. Cada tarefa gera novas demandas. O docente corre mais, mas nunca chega; produz mais, mas sente que produz menos. Esse sofrimento é estrutural, não episódico.
A geopolítica agrava o quadro. As plataformas são treinadas em bases de dados hegemônicas, moldando agendas de pesquisa segundo padrões do Norte. O professor periférico é compelido a publicar em inglês, seguir templates globais, seguir métricas globais. A universidade exporta conhecimento bruto e importa prestígio simbólico, num ciclo de dependência cognitiva.
A financeirização reforça o fetiche produtivista. Cada artigo é ativo reputacional. A universidade sobe nos rankings, mas o docente se esgota. Publica para garantir visibilidade institucional, não para intervir na realidade social. A IA cumpre metas, mas reduz a densidade da reflexão, convertendo o pensamento em insumo para métricas. Esse tecnofetichismo — a crença de que a tecnologia resolve contradições — é apenas versão mais sofisticada da já referida modernização conservadora.
O risco é o conformismo epistêmico: escreve-se para agradar ao algoritmo, não para tensionar o real. O tempo crítico desaparece, a subjetividade docente é domesticada. Adoecimento e esvaziamento existencial tornam-se epidêmicos. Há percepção de que a universidade já não oferece abrigo.
O professor sente que perdeu a autoria de seu tempo. Em reuniões e nas plataformas digitais, sua presença é cronometrada, raramente escutada. Esse sentimento reforça o desencanto e a solidão, gerando afastamento mesmo em espaços coletivos. A docência, antes espaço de invenção, vira fardo e o desejo de permanência se esvai. Pesquisar, antes criador de mundos, hoje parece apenas alimentar planilhas.
É tempo de resistir
Resistir é urgente. É preciso disputar a IA em favor do comum: usá-la para abrir tempo de leitura e reflexão, não para acelerar produção serial. É preciso recuperar o tempo lento da pesquisa, condição para manter a função crítica da universidade. Mais que evitar o adoecimento, é recuperar o sentido do trabalho docente como formação de humanidade.
A universidade insurgente deve proteger corpo e tempo docentes, devolver sentido ao trabalho e transformar a IA em aliada do comum. Sem isso, o futuro acadêmico será extensão da lógica algorítmica, e a crítica sumirá sob aparência de eficiência.
É tempo de resistir — e de fazê-lo coletivamente, para que a universidade siga sendo espaço de pensamento, não de submissão.
João dos Reis Silva Júnior é professor titular da Universidade Federal de São Carlos.
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato