Por José Luiz Quadros de Magalhães
Quero trazer duas questões para reflexão dos nossos leitores, a partir de dois acontecimentos importantes para o Brasil. A condenação do ex-presidente e de seus colaboradores na tentativa de golpe de Estado e a aprovação da chamada PEC da blindagem na Câmara Federal.
O Brasil não viveu um processo histórico fundamental que deve caracterizar a passagem de um regime ditatorial ou totalitário para um sistema constitucional democrático: a justiça de transição. Países como a África do Sul e Argentina, após a restauração ou implantação de uma democracia constitucional, realizaram um acerto de contas com seu passado.
Entender a história, saber quem fez o que, porque, e perdoar ou punir é fundamental para o começo da construção de uma outra sociedade. Os fantasmas do passado precisam desaparecer para que não voltem a nos assustar e ameaçar.
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A condenação dos envolvidos na tentativa de golpe de Estado tem um efeito de acerto de contas com uma cultura de violência, exclusão e autoritarismo, palavras que andam juntas. Este julgamento histórico, transparente, acompanhado por milhões de pessoas, se constitui em uma oportunidade para seguirmos adiante, confiantes na possibilidade de construir uma sociedade mais justa em uma democracia estável.
PEC da Blindagem
Na semana seguinte um outro fato mobilizou a opinião pública. A PEC das Prerrogativas, também chamada de PEC da Blindagem. Este debate nos lembra outro aspecto fundamental referente as leis, à Constituição e ao funcionamento das instituições democráticos.
A Constituição de 1988 trouxe, entre diversas normas democráticas, a ideia de proteção dos parlamentares, representantes do povo, diante de perseguições por razões políticas. Assim, para processar um deputado federal ou senador, era necessário a aprovação da Câmara ou Senado, conforme o caso.
Em 2001, esta prerrogativa, que nasceu como proteção aos representantes populares, foi retirada do texto constitucional. Agora, em 2025 a Câmara de Deputados aprovou uma emenda à Constituição que restaura essa “prerrogativa”. O contexto, entretanto, é outro, e logo a norma jurídica tem um sentido completamente diferente. O contexto é de apuração e punição, seguindo a lei, a Constituição e as garantias constitucionais, de atos cometidos por políticos e outros personagens.
São inúmeros os políticos, parlamentares municipais, estaduais e federais, prefeitos, governadores e ex-presidente, envolvidos com crimes comuns e crimes contra o Estado Democrático de Direito. Aquela extrema direita que no passado perseguiu, matou e torturou, com novos personagens, se diz perseguida por tentar de novo matar, torturar, roubar, entre outros crimes. Trata-se de outro contexto, outra realidade, outros objetivos.
Finalmente gostaria, entretanto, de acrescentar mais uma reflexão. Fiquei bastante preocupado com a rapidez, superficialidade e fúria, com que pessoas, em redes sociais que se intitulam de esquerda, atacaram parlamentares de “esquerda” que votaram a favor da PEC da “blindagem”.
Não deveríamos reproduzir a raiva, a superficialidade e o ressentimento típicos dos fascistas. Temos que, neste caso, primeiramente, no mínimo, ouvir as razões desses parlamentares.
Talvez a questão seja mais complexa: vivemos tempos de law fare, ou seja, o uso da lei, da Constituição e das Instituições que devem servir a democracia, contra a democracia. São vários os exemplos no Brasil e no mundo, e os mais conhecidos são do Presidente Lula e da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Encerro essas reflexões lembrando do caso de Daniel Jadue, destituído do cargo de prefeito do Partido Comunista do Chile, preso sem condenação e impedido de se candidatar à presidência. Ele foi pioneiro no seu país das farmácias populares afetando os interesses insaciáveis da indústria farmacêutica.
Há contextos e contextos, e a contemporaneidade é extremamente complexa. Os mecanismos de guerras híbridas, entre eles da guerra de afetos são sofisticados e não podem ser compreendidos com respostas emocionais superficiais raivosas.
José Luiz Quadros de Magalhães é constitucionalista e estudioso da política no sub-continente, professor da Faculdade de Direito da UFMG e integrante da Diretoria Setorial de Arte e Cultura do APUBHUFMG+
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal