Na manhã do dia 26 de agosto, numa cidade do Centro-Oeste mineiro, na porta da Câmara Municipal de Vereadores, foi encontrada morta uma mulher trans, de 39 anos de idade, que vivia em situação de rua. Nesse mesmo dia, o legislativo municipal aprovou um projeto de lei criando o “Dia dos Legendários”. Curiosamente, nesta mesma cidade, alguns meses antes, foi fechado o Centro de Atenção à Saúde LGBTQUIA+.
Qual é a relação entre estes fatos?
Sem a garantia da laicidade não há democracia, não há igualdade
Ao longo da história do Brasil, as relações entre Estado e Igreja foram complexas. Durante todo o Império a sociedade brasileira foi teocrática: o catolicismo era a religião oficial do país. Somente com a proclamação da República, em 1989, e com a primeira Constituição Republicana, em 1891, temos a separação entre Igreja e Estado. Mas algumas práticas religiosas, principalmente aquelas de tradições africanas, continuaram encontrando empecilhos e, muitas vezes, sendo criminalizadas.
O direito à liberdade religiosa será explicitado legalmente apenas com a Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 5, inciso VI, define que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e estabelece, no inciso VI, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.
Além de garantir a liberdade de culto, a laicidade do Estado pressupõe que fundamentos religiosos ou códigos de conduta de alguma religião não se constituirão como parâmetros para a criação de leis e ou medidas a serem tomadas pelo poder público.
É preciso educar para a laicidade
Muito embora a Constituição Federal determine a laicidade do Estado, a sociedade brasileira ainda não é laica. E, nos últimos anos, temos acompanhado o fortalecimento de uma agenda conservadora que se sustenta, entre outros, em fundamentos religiosos e em preceitos morais.
As políticas públicas, principalmente no campo da educação e da saúde, têm sido, cada vez mais, questionadas a partir desses princípios.
Entre as várias iniciativas desse campo conservador, podemos citar o movimento Escola Sem Partido, a utilização do fantasma da “ideologia de gênero” para impedir o debate sobre a sexualidade e a diversidade nos espaços escolares, a retirada das questões de gênero dos Planos Decenais de Educação. No campo da saúde, os impedimentos em relação ao debate sobre direitos reprodutivos e também sobre as infecções sexualmente transmissíveis.
Mais recentemente, acompanhamos, em diversas casas legislativas (em âmbito municipal e estadual), a aprovação de projetos de lei sobre intervalos bíblicos e uso da bíblia como material paradidático nas escolas, além de outros que dificultam o acesso ao direito ao abordo para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
Obviamente, sempre que os princípios religiosos são tomados como base para definição de uma legislação ou de uma política pública, um determinado grupo é discriminado.
O direito à diversidade, à justiça e à equidade não se efetiva sem a garantia da laicidade do Estado. Somente uma sociedade laica poderá garantir a todas as pessoas – independentemente da confissão religiosa ou mesmo de sua ausência – os direitos humanos fundamentais. Por isso é preciso afirmar a educação para a laicidade como uma das dimensões da Educação em Direitos Humanos.
Os fatos ocorridos num município do Centro-Oeste mineiro (citados no início deste texto) evidenciam a necessidade de que avancemos em relação a este tema.
José Heleno Ferreira é doutor em Educação (PUC MG) e membro da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos – Coordenação Minas Gerais. Email: [email protected]
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Leia outros artigos sobre direitos humanos na coluna Educação em Direitos Humanos em Pauta no jornal Brasil de Fato
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal