*por Mariane da Silva Pisani
No dia 21 de agosto, na Argentina, se comemora o Dia Nacional da Futebolista. A data é um convite para celebrar e para resgatar a memória sobre uma partida disputada em 1971, na Copa do Mundo Feminina – campeonato não oficial da Fifa. Nesse dia, as argentinas golearam as inglesas por 4×1, e ao final da competição chegaram ao quarto lugar. Essa data, mais do que resgatar a memória de um momento histórico, nos convida a refletir sobre o que significa ser jogadora de fútbol em um mundo onde o futebol ainda é marcado por desigualdades de gênero. Mais do que um esporte, paras nossas hermanas argentinas o futebol se tornou um espaço de resistência, de luta por autonomia e de reconhecimento. Foi nesse contexto que, ao longo do ano de 2024, durante minhas vivências na Argentina, pude enxergar o futebol para além da competição, como uma prática feminista, coletiva e profundamente política.
A La Nuestra Fútbol Feminista nasceu no ano de 2006, na Villa 31, uma comunidade popular localizada na cidade de Buenos Aires, com o objetivo de criar um espaço de lazer para meninas e adolescentes do bairro. Em 2007, a treinadora Mónica Santino assumiu o comando do projeto, que começou com apenas oito jogadoras na Cancha Güemes, um espaço historicamente dominado por homens. Com o tempo, o número de participantes cresceu e outras treinadoras, como Juliana Román Lozano, passaram a integrar a iniciativa. Hoje, La Nuestra já impactou mais de 400 mulheres e conta com uma equipe técnica formada por mais de dez profissionais. Mónica Santino compartilhou um pouco das experiência iniciais com La Nuestra Fútbol Feminista:
Acho que há algo que acontece nos bairros na Argentina que tem a ver, em primeiro lugar, com o espaço. As pessoas vivem em locais muito pequenos, muitas vezes em condições de superlotação, com oito ou dez pessoas dividindo um único cômodo. Nessa realidade, os espaços públicos por excelência são os campos de futebol, que permanecem intocados, pois, mesmo diante da necessidade urgente de moradia, ninguém vai construir uma casa no meio de um campo. Atualmente Villa 31 tem cerca de 10 ou 12 campos de futebol espalhados por sua extensão. Isso mostra a importância do futebol para nós. Portanto, pensar que um fenômeno cultural de tamanha relevância, como é o futebol, exclui mulheres e diversidades LGBT+ é extremamente problemático. Assim, o primeiro grande passo para o empoderamento que demos foi dizer: “Bem, este campo, neste horário, duas vezes por semana, será para as meninas”. E assim elas começaram a chegar. Ocupar esse espaço foi algo central para nós. A luta foi direta, sempre seguindo os códigos da Villa 31. Houve um momento em que, ao levantarmos os olhos, percebemos que éramos todas mulheres. Esse foi o marco fundacional do projeto. (Mónica Santino, 11 de Fevereiro de 2025)
Ao longo de todo ano de 2024 e parte de 2025 acompanhei de perto os trabalhos desenvolvidos pelas integrantes do La Nuestra Fútbol Feminista. Pude vivenciar treinos e jogos, momentos de celebração – como, por exemplo, a comemoração dos 17 anos do projeto –, momentos de formação das atletas, lançamento de livros sobre futebol feminino na Cancha Güemes. A partir da convivência com elas pude perceber que as integrantes da La Nuestra reafirmam, cotiadianamente, o futebol feminista como uma postura política, um campo de disputa que não pode ser separado da luta por direitos humanos mais amplos. Assim, ao longo da prática esportiva, elas fomentam estratégias de resistência diante do atual cenário argentino; questionam as relações patriarcais com clubes e instituições esportivas – indagando se é possível dialogar com essas estruturas ou se o rompimento é a melhor saída; debatem a urgência de construir uma agenda coletiva feminista dentro do futebol; estimulam o cuidado coletivo e as redes de apoio entre elas como parte fundamental da militância feminista, garantindo assim que nenhuma companheira fique pelo caminho.
Não podemos mais chamar de futebol feminino, nem de futebol de mulheres. Precisávamos reconhecer todas as outras identidades [de gênero e LGBT+] e nomear esse processo de transformação vivido pelas meninas da Villa 31 e por todas as pessoas que vêm jogar conosco. Sentimos que essa mudança era uma adequação ao tempo e também uma forma de dar nome ao nosso trabalho e conquistas. (Mónica Santino, 11 de Fevereiro de 2025)
A mobilização em redes sociais também é uma estratégia adotada pelas integrantes da La Nuestra, apontada como ferramenta essencial de visibilidade e pressão contra as violências . Ao perguntar o que representava a ideia de um futebol feminista, Mónica respondeu:
O futebol sempre teve uma identidade masculina muito forte, protagonizado por homens. Logo, a ideia de que podemos jogá-lo, organizá-lo, dirigi-lo e conduzi-lo é fundamental. Podemos assumir todos os papéis possíveis dentro do futebol: a direção técnica, a gestão de um clube, a carreira de jogadora. Mas tudo isso com um olhar e uma construção própria. Mesmo que o caminho nos leve também a fazer do futebol um espetáculo, como acontece com os homens, partimos de outra concepção e construímos a partir de outro lugar. Agora nos atacam de todas as formas, nos tratam como se fôssemos uma seita. Em vez de dizer feminismo, falam em ideologia de gênero. Quando ouço uma companheira dizendo “ideologia de gênero”, penso: não! Esse é o discurso da extrema direita e do fundamentalismo evangélico. Somos feminismo, não somos ideologia de gênero. Chamar de futebol feminista representa toda essa transformação. Não é um capricho, não significa que vamos jogar sem camisa ou que todas vamos usar camisetas verdes¹. Nada disso. Trata-se de tomar um direito e torná-lo nosso. Quando diemos futebol feminista, acho que é exatamente sobre isso que estamos falando. (Mónica Santino, 11 de Fevereiro de 2025)
Mais do que um espaço de lazer, o futebol feminista, para essas mulheres, é um instrumento de transformação social e política, um lugar de resistência frente ao machismo, ao sexismo, às violências LGBTfóbicas e ao neoliberalismo que insistem em permear o universo do futebol.
O futebol feminista, como praticado pela La Nuestra Fútbol Feminista, transcende a esfera esportiva e se firma como uma ferramenta política de resistência. Ele não apenas desafia a exclusão histórica das mulheres e pessoas LGBT+ dos gramados, mas também propõe uma nova forma de viver e construir o esporte, baseada na solidariedade, na coletividade, na autonomia e na luta por direitos.
A experiência da La Nuestra na Villa 31 evidencia como a ocupação dos espaços públicos e a criação de redes de apoio podem transformar vidas, fortalecendo a ação feminista dentro do futebol. No atual cenário argentino, marcado por retrocessos e ataques às conquistas dos movimentos sociais, a mobilização dessas jogadoras se torna ainda mais essencial. O que La Nuestra nos ensina é que o futebol feminista não é apenas sobre jogar – é sobre disputar territórios, afirmar existências e construir um futuro onde todas/todos/todes possam estar, resistir e jogar em igualdade.
Agradeço imensamente à companheira Verónica Moreira que conduziu, junto comigo, a entrevista com Mónica Santino.
1 – Uma alusão aos lenços verdes, símbolo do movimento feminista argentino pela descriminalização do aborto.
*Mariane Pisani é antropóloga e professora na Universidade Federal do Piauí (UFPI), leciona no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt) e é Vice-Coordenadora do INCT Estudos do Futebol Brasileiro.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.