Ouça a Rádio BdF

Entre a ferida e a cura

O boxe é também um território para a expressão dos sentimentos

Michel de Paula Soares*

No dia após o falecimento de sua irmã, Francisco estava lá, batendo sacos, solitariamente. Foi Henrique quem me avisou, assim que cheguei à academia: “a irmã dele morreu ontem”. Aproximei-me, tentando não botar reparo em sua larga cicatriz que ultrapassa o lado direito da bochecha, fruto de um “confronto” com a polícia, ainda na juventude. Expressei minha solidariedade, comentei que já havia perdido minha mãe, e que, portanto, compreendia sua dor. Sem perder a concentração, respondeu que estava sendo difícil, pois “ainda não era a vez dela, mas Deus sabe o que faz”, e voltou a golpear o saco de pancada com ritmo, destreza e força. Outros colegas de treino, sempre que chegavam à academia, cumpriam o mesmo ritual de solidariedade e conforto para com o amigo. 

Reservado e recluso, Francisco treina diariamente por mais de duas horas seguidas, no auge de seus cinquenta e seis anos de idade, com mais de trinta dedicados a pratica do boxe. Em outra ocasião, comentei sobre minha percepção de que ele havia emagrecido, e recebi a resposta: “ainda preciso perder pelo menos mais cinco quilos”. Ao meu lado, Jeferson escutou a resposta e replicou: “para que, se você não vai lutar?” Por mais de uma vez observei o treinador da equipe dizendo a Francisco que não deixaria mais ele treinar se continuasse emagrecendo, que ele precisava se alimentar direito e descansar com mais frequência. Reivindicações em vão. Aposentado no sistema produtivo assalariado, Francisco não falta um dia se quer. E sempre repetia: “se eu parar, eu fico doente”.

É no boxe que muitos homens constroem perspectivas e teorias sobre saúde e bem-estar. Justamente através de uma modalidade em que a eficácia se comprova através do ato de “machucar” o adversário. Em sua pesquisa em uma academia de boxe na cidade de Paris, na França, Jérôme Beauchez dizia que os oponentes dos boxeadores, sejam reais como no sparring, ou imaginários como na prática de bater sacos, são constituídos fora do boxe, em “outras lutas diárias”, durante o enfrentamento de adversidades cotidianas encorporadas por sujeitos subalternizados nas implacáveis estruturas de poder. O boxe é também um espaço-tempo onde se reproduz a própria motivação cotidiana de se manter hábil, ativo e sagaz. Aspectos fundamentais para se alcançar uma vida satisfatoriamente digna.

Aprendi, com meu colega antropólogo Pedro Lopes, que um relativo estado integral de saúde é adquirido a partir da densidade de relações de cuidado, interdependência e mutualidade. Assim, toda forma de cura depende da manutenção de relações de cuidado, ou da reparação e reconstrução destas, quando encontram-se fragilizadas. Ou seja, emancipação, autonomia e saúde são conquistas coletivas e compartilhadas.

Para além de palco com o confronto, consigo e com o Outro, para além de uma fábrica de marcação de corpos e exposição de cicatrizes, o boxe é também um território para a expressão dos sentimentos. É através dos aparelhos, das luvas e sacos de pancada que muitos homens expressam suas dores e alegrias. Compartilham, com outros homens, o que significa ser Homem, ser Homem negro, ser Homem de periferia, em um país cujo projeto de nação insiste em fixá-los no espaço da dor, da morte e da ausência. 

*Doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, pesquisador do LabNAU/USP e treinador do Boxe Autônomo.

Veja mais