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Esportes Rebeldes

A nova linha de impedimento: quando o futebol decide quem pode ser mulher

Esta coluna é coordenada por Barbara Pires, Bruno Vieira Borges, Mariane Pisani e Michel de Paula Soares. Debatemos diferentes temas sociais a part...
Corpos racializados, mais virilizados, desviantes dos padrões brancos e cisnormativos também passam a ser alvo de regulação, vigilância e humilhação

Por Barbara Gomes Pires*

Nos campos e vestiários do futebol feminino inglês, onde se esperava uma política de mais inclusão e acolhimento, germina uma nova – mas não tão recente assim – forma de exclusão. A Football Association (FA), em sintonia com a última decisão da Suprema Corte britânica em torno da interpretação do “Equality Act” de 2010, decidiu barrar a participação de mulheres trans em todas as instâncias competitivas sob sua supervisão. Uma política mais endurecida que, justificada com o pretexto de proteger o “sexo biológico” da categoria de mulheres, opera não apenas como filtro regulatório de participação esportiva, mas como artefato produtivo para demarcar quem é o corpo legítimo de integrar os espaços femininos no futebol inglês.

O mais preocupante é que essa exclusão não se limita ao alto rendimento. A regulação afeta também os campos escolares, comunitários e amadores. Todos os níveis do futebol feminino inglês. Assim, o futebol, esse jogo que é vivido ordinariamente como uma prática esportiva acolhedora, de lazer e de socialização, muito além da busca pela profissionalização, torna-se um dispositivo de controle social. Em vez da entidade seguir uma lógica de expansão de direitos, buscando incluir mais participantes e telespectadoras, na esteira da Copa do Mundo Feminina em 2027, que será no Brasil, assume-se como campo de disciplinamento das normas binárias. Em torno do sexo, do gênero e da sexualidade de suas atletas. O medo de uma injustiça competitiva se sobrepõe à evidência histórica: não há sequer uma atleta trans no futebol profissional britânico, e, no contexto amador, elas não somam nem trinta atletas entre milhões de mulheres registradas nesse nível de atuação.

Como se não bastasse essa perseguição antecipada, soma-se às atletas dissidentes a mácula da humilhação pública e dos ataques online. Barbra Banda, atacante da seleção zambiana e destaque no clube Orlando Pride, sofre essa perseguição desde 2022, quando um desentendimento administrativo entre as políticas de elegibilidade do Conselho Africano de Futebol (CAF) e da FIFA a cortaram da Copa das Nações Africanas após exames apontarem níveis de testosterona acima da média. A atleta foi reintegrada a equipe e, ano passado, teve uma atuação de destaque durante a fase de grupos nos Jogos Olímpicos de Paris, chegando a ser uma das 11 jogadoras eleitas para a seleção feminina da temporada 2024, em votação organizada pela FIFPRO.

Mesmo assim, Banda tem enfrentado críticas e discurso de ódio nos últimos meses. A atleta também foi eleita Jogadora do Ano pela BBC, um prêmio de votação popular, depois da indicação de um grupo de especialistas envolvidos com futebol ao redor do mundo. O prêmio foi concedido no fim de 2024, poucos dias depois de Banda e suas companheiras conquistarem o primeiro título da história do clube na NWSL – com a atleta marcando o gol decisivo na partida, ocasião em que também foi eleita a melhor jogadora da final. Junto de Marta, Barbra Banda é a nova estrela do Orlando Pride.

Depois desse ano vencedor no futebol profissional estadunidense, Banda recebe a honraria com merecimento esportivo, mas também incorporando esse peso simbólico de representar um corpo que não se encaixa nas referências hegemônicas de feminilidade. Mesmo com os gols e o profissionalismo, que a fazem ser uma atleta querida pelas jogadoras e gestoras da NWSL – a ponto de publicarem notas institucionais em sua defesa – os velhos fantasmas retornam: a suspeita, a linguagem de acusação, as dúvidas e as perguntas insidiosas que desejam invalidar seu pertencimento sexual e identidade de gênero. Ainda hoje, é constantemente alvo de violências verbais com especulações lgbtifóbicas sobre seu corpo e aparência.

O caso de Banda revela que o cerco não se fecha apenas contra mulheres trans. Corpos racializados, mais virilizados, desviantes dos padrões brancos e cisnormativos também passam a ser alvo de regulação, vigilância e humilhação. O futebol, nesse contexto de atualização regulatória, transforma-se em um espelho invertido da inclusão: quanto mais plural a presença, dentro e fora do campo, mais se exige conformidade com uma identidade feminina idealizada que está muito afastada realidade material do corpo biológico e diverso dessas atletas.

Só que mais do que uma medida pontual, que atingirá um restrito número de mulheres trans, mulheres intersexo e/ou mulheres masculinizadas e dissidentes em suas expressões de gênero, essa nova regulação da FA representa um sinal vermelho para o futuro dos esportes femininos que vai além do futebol inglês. Ao reforçar a exclusividade biológica, demarcada no nascimento, abre-se caminho para uma prática sistemática de verificação e normatização da feminilidade de todas as mulheres. Para atletas da categoria masculina, amadores e profissionais, nenhuma mudança regulatória. A masculinidade nunca é contestada.

Então como se sentir segura em um contexto esportivo que exige avaliação visual de sua feminilidade? E, no caso de uma investigação, que busque comprovar com certidões e exames que você deve ser considerada verdadeiramente mulher para jogar uma partida de futebol? Como sentir-se parte de um coletivo esportivo, mesmo em ambientes escolares e amadores, que observa o corpo de uma jovem atleta com medo de fraude ou de pânico de alguma vantagem especulada que seria demasiadamente excessiva para o esporte feminino?

No Brasil, essa retórica já ecoa em projetos de lei e em conversas que vazam do mundo esportivo de alto rendimento para um debate público sobre a participação feminina. Mas, além da necessidade regulatória de uma rígida manutenção da divisão sexuada do esporte, o problema central desses manejos de elegibilidade é o indicativo de que existe modelos específicos de feminilidade que sustentam a organização das categorias esportivas e dos desejos midiáticos que atravessam o esporte para as mulheres.

Endurecer esses modelos não significa proteger mulheres, mas criar mais muros e obstáculos para uma participação segura, inclusiva e aberta à transformação do que significa ser mulher dentro e fora do campo de jogo. O vestiário não pode se tornar um interrogatório. O esporte não deve ser um dispositivo de provocação, paranoia e perseguição para mulheres. Isso significa frisar que estabelecer critérios de suspeição e de discriminação para garantir uma justiça esportiva contrasta com qualquer tipo de estratégia eficaz para fomentar um ambiente positivo onde meninas e mulheres possam florescer com a prática lúdica, divertida e acolhedora do futebol.

Essa recente decisão da FA não se concentrará apenas nas atletas de futebol nem nas mulheres do Reino Unido. Quando validamos publicamente que a proteção da categoria feminina se confunde com a institucionalização de uma pedagogia da humilhação pela codificação biológica de modelos excludentes da feminilidade, todas nós saímos perdendo.

*Barbara Gomes Pires é antropóloga, atualmente pesquisadora de pós-doutorado em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ). Estuda regulações esportivas para a categoria feminina. Atuou em duas consultorias para a ONU Mulheres Brasil, utilizando o esporte como motor de transformação social e promoção da igualdade de gênero.

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