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Santa Maria sitiada: os interesses por trás dos tapumes de metal

"O mercado e sua sanha raivosa pelo lucro insiste em esquecer que as cidades não são amontoados de concreto"


O povo de Santa Maria, região administrativa do Distrito Federal, tem sido surpreendido, nos últimos meses, por cercamentos de grandes áreas da cidade. Da noite para o dia, tapumes de metal são erguidos em locais antes abertos, sem nenhuma explicação. Somente depois de instalados vários desses cercamentos é que começaram a aparecer placas nas quais se lê: “Aqui será construída a nova Santa Maria: Seja Bem-Vindo ao Futuro!”.

Vale frisar que estamos falando de áreas públicas, algumas das quais destinadas a equipamentos comunitários, como escolas, unidades de saúde e restaurante comunitário. Um dos casos mais notórios é dos cercamentos dentro do Área de Regularização de Interesse Social (Aris) Ribeirão, onde está o bairro Porto Rico de Santa Maria. Existem documentos e pactuações das quais representantes da população participaram, para que ocorra a instalação de serviços públicos neste território identificado como vulnerável, serviços há muito esperados e necessários.

Isso virou assunto dentro da cidade: dúvida, curiosidade e especulações. Vemos o povo completamente alheio a uma invasão em seu território. Quando indagada pela Associação de Moradores do Porto Rico, a Administração local apenas relata se tratar de um cercamento preventivo para evitar “invasões”. Ou ainda que não dispõe de mais informações por ser assunto do âmbito privado.

E então devemos questionar: o que o âmbito privado tem a ver com espaços públicos? E com que direito cercam locais em que o governo deveria estar investindo em infraestrutura social?

Nos referidos outdoors em que nos convidam para uma suposta nova Santa Maria, uma propaganda de mercado promete a construção justamente dos equipamentos que a cidade necessita. Estranho: como um empreendimento privado, que construirá grandes prédios em condomínios fechados, pode prometer escolas, creches, hospitais, UPAS, UBS, centros de convivência, pontos de cultura e muito mais?

É de encher os olhos, mas há incongruências.

Serão equipamentos privados ou públicos? Qual a participação do governo? Serão utilizados recursos públicos para construir esse empreendimento que trará lucro às duas empresas envolvidas (o Santa Maria Empreendimentos Imobiliários e o NRB Empreendimentos Imobiliários)? Existe um estudo sobre os impactos ambiental e social? São perguntas pertinentes e para as quais não temos qualquer resposta, pois todo processo não tem sido transparente.

Interesse de quem?

Ao pesquisar sobre as empresas, chegamos ao nome de José Ricardo Rezek, o mega empresário por trás dos tapumes. Dono de um conglomerado que atua em diversos setores estratégicos, o multimilionário costuma fazer generosas doações às campanhas daqueles que defendem seus interesses, partidos como MDB e União Brasil. No DF suas relações também são bastante convenientes. Seu filho, José Ricardo Lemos Rezek, é um dos beneficiários da manobra do senhor Ibaneis Rocha no caminho de privatização do BRB. A família Rezek recebeu de bandeja 49% da unidade de Crédito do banco, o BRB Crédito, Financiamento e Investimento. Ironicamente, o marketing governamental diz: “Seja Bem-Vindo ao Novo BRB”.

As experiências de outras regiões administrativas com a construção de mega condomínios não são de melhoria para a população, muito menos em termos de acesso aos direitos de cidadania. Temos os problemas de urbanização potencializados: alagamentos na época das chuvas, engarrafamentos incessantes, explosão populacional e seus desdobramentos, como a insuficiência dos serviços. É o caso concreto do Gama, que apesar dos imensos prédios não ganhou nenhum novo equipamento público.

“O direito à cidade é talvez dos direitos humanos o menos popularizado.”/ Foto: José Bernardo Fernandes FH2

E importa divulgar que este mesmo grupo que promete a construção de uma cidade inteligente que vai melhorar Santa Maria entregou em São Paulo, neste atual governo Ricardo Nunes (MDB), um megaempreendimento habitacional inaugurado com todas as pompas, mas que é descrito como insalubre pela população, apresentando diversos problemas estruturais.

Há ainda o elemento humano. Que ousadia um empreendimento privado, afirmar que transformará a cidade que é nossa numa nova cidade da qual eu não participo.

O mercado e sua sanha raivosa pelo lucro insiste em esquecer que as cidades não são amontoados de concreto, mas construções complexas eivadas da experiência humana.

O direito à cidade é talvez dos direitos humanos o menos popularizado. Poucos o reconhecem e estamos tão habituados a violação de direitos que, embora sintamos estranheza diante dos tapumes, não temos o ímpeto de gritar em alto e bom som que não podemos aceitar qualquer construção, em qualquer lugar, de qualquer jeito. Temos o direito de saber, participar e escolher.

A Santa Maria que já existe, e que é feita por nós, ainda precisa de mais escolas, Unidade Básica de Saúde (UBS), centros culturais e de convivência. Precisamos do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), do restaurante comunitário no Porto Rico. Queremos espaços abertos e praças onde possamos criar e recriar a cidade. Queremos que o espaço público seja ocupado para o público, e não apropriado e invadido para o lucro de uns e benefício de poucos.

Não é possível que o cercamento de áreas públicas no meio da cidade de Santa Maria, que está fechando passagens, atrapalhando a visão, destruindo locais em que antes havia convivência comunitária com o cultivo de hortas, pomares e jardins, passe desapercebido pelo Ministério Público e representantes dos interesses do povo na Câmara Legislativa.

O poder econômico de um conglomerado não pode prevalecer sobre os interesses reais das pessoas da cidade e exigimos respostas. Porque sim, também desejamos o novo, a melhoria, o crescimento, mas para nós isso envolve mais do que essa velha promessa tão batida de modernização, e certamente não envolve a venda barata de nossos sonhos por moradia para a especulação imobiliária e o enriquecimento de um pequeno grupo de amigos.

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*Alex Martins Silva e Paula Juliana Foltran são membros do Coletivo Família Hip Hop.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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