João Pessoa chega ao seu aniversário dividida. De um lado, a cidade que se vende como moderna, turística, verticalizada. De outro, a cidade real – das comunidades esquecidas, dos trabalhadores explorados, das mães que carregam os filhos no colo e o peso de uma cidade que não chega até elas.
Neste 5 de agosto, proponho um exercício necessário – e urgente: que cidade estamos construindo? E, sobretudo, para quem?
O que há entre essas duas cidades não é apenas contraste. É conflito. Um conflito de projetos, de prioridades, de pertencimento.
A capital paraibana tem avançado muito, a passos largos. Mas, se prestarmos atenção, o rumo é o de um modelo urbano que exclui, encarece, devasta. Por trás da estética das principais avenidas largas e bem asfaltadas, da orla marítima e dos lançamentos imobiliários de luxo, esconde-se uma engrenagem que expulsa os pobres, viola a natureza e restringe o direito à cidade a poucos.
Este não é um diagnóstico abstrato. É um chamado. Porque há outra João Pessoa – popular, periférica, viva – que insiste em existir. E que precisa entrar de vez no debate público. Não como margem, mas como centro de um novo projeto de cidade.
O ciclo de injustiça e exploração
É chocante ver, em pleno 2025, o que aconteceu há poucas semanas: 112 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão em canteiros de obras da construção civil em João Pessoa e Cabedelo – alojados em prédios inacabados, dormindo sobre tijolos ou no chão, expostos a riscos de queda e com alimentação precária.
Essa não é uma tragédia isolada: é o símbolo mais brutal da engrenagem que sustenta o modelo urbano da cidade. A formalização do ‘avanço’ ocorre sobre corpos exaustos, submetidos à precarização, à informalidade forçada e à ausência de direitos básicos.
O que fizeram -e o que fazem -o prefeito e o governador em relação a isso?
Declarações públicas são importantes, mas absolutamente insuficientes se não vierem acompanhadas de medidas concretas de prevenção, fiscalização e responsabilização continuada. É inadmissível assistir a um escândalo desse porte e ter, como resposta, apenas notas oficiais vazias e promessas de cooperação institucional.
Sob o verniz da ‘modernização’, erguem-se cada vez mais prédios para essa crescente massa de neo-pessoenses que chegam em busca da nossa qualidade de vida – enquanto se mantém a exploração dos trabalhadores que os constroem. Essa lógica predatória destrói a cidade real: a das mãos calejadas, dos bairros humildes, da cultura viva e das redes de solidariedade que sustentam as periferias.
Esses trabalhadores são invisíveis até o momento do resgate. E os responsáveis políticos permanecem à margem da responsabilidade estrutural. Essa omissão institucional legitima o ciclo de desumanização e desigualdade urbana.
É contra isso que precisamos romper – com justiça, ação e coragem.
O direito à cidade como horizonte
João Pessoa precisa voltar a se olhar com sensibilidade, com coragem, com justiça. Como urbanista, gestor público e filho desta cidade, tenho dedicado minha trajetória a essa transformação. Da militância por moradia à criação do programa Periferia Viva no Governo Federal, sigo afirmando: não há cidade justa sem debater a inclusão social e econômica.
Essa não é apenas uma ideia bonita. É uma agenda concreta, que já mobiliza recursos, políticas e experiências em todo o Brasil. E João Pessoa está no centro dessa virada.
Na Secretaria Nacional de Periferias, estamos construindo uma série de estratégias para renovar as políticas públicas a partir das periferias. Uma delas é o Prêmio Periferia Viva, que reconhece iniciativas populares que fazem a diferença no cotidiano das comunidades – projetos autogestionados, muitas vezes criados à margem do apoio estatal, mas que respondem com potência às urgências do território.
Ao longo das duas edições do prêmio, a Paraíba já recebeu 10 prêmios – 6 deles em João Pessoa. A comunidade São Rafael, por exemplo, apesar de toda a violência sofrida nos últimos anos com uma proposta de urbanização imposta de cima para baixo pela prefeitura, abriga o projeto Voz Popular, reconhecido nacionalmente por sua força organizativa e cultural. Esses agentes estão construindo uma nova forma de futuro e organização social, interrompendo o ciclo de exclusão a que sempre foram submetidos.
No Róger, o projeto LAT – Língua, Arte e Tecnologia planta sementes de autonomia e protagonismo da juventude periférica pessoense – outro exemplo premiado. São expressões de uma cidade feita por e para o povo – não para os interesses de poucos. Tenho visitado várias dessas iniciativas com a Caravana das Periferias. As organizações coletivas periféricas nos inspiram a construir um novo país – e uma nova cidade.
A força desse compromisso já se traduz em investimentos concretos. Somente com recursos novos do Periferia Viva, o Governo Federal está destinando mais de R$ 365 milhões para a Paraíba – um volume inédito e robusto de investimento nos territórios populares. A grande maioria desses investimentos está na capital, que concentra a maior proporção de famílias morando em favelas e comunidades urbanas. São obras de urbanização de favelas no Porto do Capim, Aratu e Jardim América; projetos de regularização fundiária na Feirinha e Chapéu de Couro; parceria com a UFPB para residência em assessoria técnica; além de ações do eixo Regularização e Melhorias (RegMel) em 16 municípios do estado, alcançando comunidades historicamente esquecidas.
E isso sem contar as obras antigas que estavam ‘adormecidas’ pelas gestões locais e que estamos tentando retomar com força total – como a urbanização do bairro São José e da comunidade do ‘S’, em João Pessoa. O recado é claro: o Governo Federal voltou a olhar para as periferias, com prioridade, planejamento e ação.
O caso do Parque da Cidade
Por outro lado, a prefeitura aloca o seu orçamento de maneira desproporcional em áreas já altamente valorizadas, como é o caso do projeto do chamado ‘Parque da Cidade’.
Não é que ele seja desimportante. Não o é. Espaços e equipamentos públicos de alta qualidade nunca são demais. O problema é o tratamento diferenciado que a prefeitura dá justamente às fatias já mais ricas e bem qualificadas da cidade – em detrimento de tantas outras.
A negociação para instalar esse parque envolveu (pasmem) a cessão de quase 20% da área para instalação de empreendimentos particulares, conforme estabelece o TAC firmado com o Ministério Público da Paraíba. Enquanto o Estatuto da Cidade oferece diversos instrumentos para garantir uma urbanização justa, a prefeitura preferiu negociar com empresários e alavancar exponencialmente seus investimentos.
Em uma área nobre da cidade, com toda a infraestrutura disponível, agora os índices construtivos serão mais permissivos – vale lembrar que o Plano Diretor foi revisado por esta gestão, conduzida por um secretário que também atuava como empresário do setor imobiliário.
O resultado? Um parque público construído com dinheiro de todos, usado como valorização garantida para poucos.
Enquanto isso, bairros inteiros seguem sem uma pracinha digna – aliás, sem saneamento, sem transporte, sem dignidade.
Segundo o Censo Demográfico 2022 do IBGE, 14,4% da população da região metropolitana de João Pessoa – mais de 168 mil pessoas – vive em favelas e comunidades urbanas. Esse número está acima da média nacional (8,1%). Ainda assim, as gestões locais parecem se negar a reconhecer essa realidade – e a enfrentá-la com seriedade, planejamento e participação popular.
Mobilidade também é inclusão
Na mobilidade, o quadro é igualmente alarmante. O transporte público é precário, mal integrado e segue com baixíssima prioridade nas ruas. Enquanto outras capitais investem em corredores de ônibus, VLTs e ciclovias seguras, aqui seguimos presos ao paradigma do carro – excludente, insustentável, ineficaz.
Como pesquisador, desde a graduação e o mestrado, me dedico à construção de propostas viáveis e inclusivas para a mobilidade em João Pessoa.
São tantas as possibilidades! Inovadoras, criativas. Podemos investir muito nos pedestres, implantar uma rede de calçadas acessíveis, com arborização, bancos e iluminação. Temos uma cidade plana, com alto potencial para uma rede cicloviária eficiente e segura. Mas os avanços são pífios há décadas.
A cidade tem potencial. Falta vontade política.
A força dos que sonham e fazem
Falta também escuta. Os movimentos sociais, as associações de moradores, os coletivos culturais e ambientais têm propostas, têm experiência, têm história.
Vimos surgir, nos últimos anos, uma belíssima luta organizada liderada pelo movimento Esgotei, que tem denunciado com coragem o colapso ambiental da orla – um dos nossos maiores patrimônios naturais, paisagísticos e turísticos – e a negligência do poder público.
A eles, minha solidariedade e meu reconhecimento.
João Pessoa merece mais.
Merece um projeto popular de cidade, com investimento nas áreas esquecidas, regularização fundiária com dignidade, urbanização com justiça ambiental, moradia decente para quem constrói esta cidade com seu trabalho.
Merece uma política de transporte que funcione para o povo – e não só para os carros. Merece respeito à natureza e à história dos seus territórios.
A cidade que queremos
Essa cidade existe – e pulsa nos territórios. Está nas feiras livres, nos terreiros, nas batalhas de hip hop, nas cozinhas comunitárias, nos saraus, nos conselhos populares. Está nos que resistem e nos que sonham.
Mas ela precisa ser convocada à cena política. Precisa disputar os rumos da cidade. E precisa ser levada a sério.
Neste 5 de agosto, deixo um chamado: que a cidade que queremos saia do papel e tome as ruas. Que a João Pessoa popular levante a voz.
E que a política – a boa política, feita com coragem e compromisso – esteja à altura desse sonho.
Porque construir essa cidade não é utopia.
É urgência.
E também é destino.
*Flávio Tavares (@flaviotavares_) é urbanista, mestre em Desenvolvimento Urbano, militante do direito à cidade e gestor público paraibano. Foi Secretário de Planejamento de Conde (PB), onde coordenou políticas premiadas de planejamento participativo e desenvolvimento territorial. Hoje, é Diretor na Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades, cargo que ocupa desde a criação do órgão por iniciativa do Presidente Lula. Coordena a implementação do Programa Periferia Viva, com foco na urbanização de favelas e fortalecimento dos territórios populares.