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Guardar a Quaresma: lutar pelo fim da escala 6×1 e pela taxação de super-ricos

Um irmão nosso, evangélico e preto, foi à reunião da bancada evangélica pedir apoio para a PEC do fim da escala 6x1

Querida gente leitora do Brasil de Fato, este nosso papo mensal sobre religião e política começa (mas não termina, prometo!) em clima de fim de Carnaval. Na Quarta-Feira de Cinzas teve início a Quaresma.

Não sei se vocês viram, mas no último dia 25, enquanto a deputada Erika Hilton (PSOL-SP) apresentava à Câmara Federal uma proposta de emenda à Constituição (PEC) pelo fim da escala de trabalho de 6 dias de serviço e 1 dia de descanso, um irmão nosso, típico membro das frações mais empobrecidas de nossa classe trabalhadora, evangélico e preto, sabendo que a bancada evangélica estava em reunião, teve uma ideia aparentemente lógica: pedir apoio de suas irmãs e irmãos parlamentares.

Luís de Jesus da Silva entrou naquela reunião de pessoas supostamente crentes em Jesus, o Nazareno, como quem entra num templo: com fé! Quanta decepção. Testemunhei, incrédulo, nas imagens que circulam pela internet, a resposta da (autoproclamada) bancada evangélica.

Nosso irmão foi retirado daquela “sinagoga de Satanás” (Apocalipse 3.9) em meio a olhares e sorrisos de escárnio e deboche. Como se fora flagrado em crime, quatro policiais o conduziram, com truculência, enquanto gritava: “Senhores deputados evangélicos, votem contra a escala 6 por 1. Os evangélicos também estão sendo explorados”.

Já fora da sala, nos corredores da “casa do povo”, a cena tornou-se um nauseante misto de calvário e navio negreiro: um corpo preto levado do chão por um mata-leão, com braços e pernas esticados em cruz. Nosso irmão se pôs aos berros: “Ai, canalhas! Ai, meu Deus! Me larguem, canalhas! Está faltando ar. Aí, Senhor!”.

Não sei para vocês, mas pra mim, talvez pelo nome de nosso irmão, talvez pelo costume de procurar na Bíblia orientação para julgar as coisas, é impossível não reconhecer o quanto, ironicamente, essa experiência de Luís de Jesus repete as torturas sofridas pelo Mestre em sua crucificação. O quanto em seu corpo dramatiza a história dos corpos de nosso povo brasileiro, supliciado na cruz do tempo.

Ontem, pela ganância escravocrata das elites coloniais. Hoje, por sua versão capitalista, que rouba sua vitalidade, alegria e juventude através de empregos que, quando existem, têm salários sempre insuficientes.

Estruturalmente injusta, nossa sociedade tem vivido, desde 2016, um verdadeiro ciclone neoliberal: o golpe contra Dilma, a pandemia e as reformas Trabalhista (2017) e da Previdência (2019) nos puseram em verdadeira escravidão moderna. Jornadas intermináveis, salários que não pagam o aluguel e a comida. Trabalho intermitente, onde somos Uber de nossas vidas. Aposentadorias, então, viraram miragem.

Enquanto isso, os super-ricos no Brasil passaram de 45 para 240 bilionários – só entre 2020 e 2024. É como se o Brasil fosse um reality show onde poucas pessoas, ligadas ao capital especulativo (que lucram com altos juros e endividamento de famílias), acumulam riqueza em cofres blindados, enquanto o resto de nós paga o prêmio com sangue, suor e anos de vida.

Para piorar, a nova presidência do companheiro Lula (PT) enfrenta a oposição ferrenha, no Congresso Nacional, de uma maioria a serviço das velhas e novas elites. Refém dela, o governo está forçado a políticas impotentes, que apesar das muitas ações paliativas e melhorias econômicas, não conseguem frear e reverter as acumuladas perdas de nossos direitos.

Foi organizando a luta contra esse gólgota neoliberal de nossa classe que movimentos populares e sindicais, organizados nas frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, lançaram, no início de fevereiro passado, uma pauta-síntese para 2025: fim da escala 6×1 e taxação de super-ricos. Já tornada PEC, como falei, somente conseguirá ir adiante com o apoio de três quintos da Câmara. A experiência de nosso irmão faz perceber quanto isso será difícil e dependerá de muita pressão popular.

A esta altura, meu povo, alguns devem estar impacientes: “E o que isso tem a ver com ‘guardar a Quaresma’, Herlon?”. O fato é que nos acostumamos a entender a Quaresma através do compromisso, em geral feito pelas pessoas mais velhas de nossas famílias, com práticas de “mortificação da carne” durante os 40 dias entre o Carnaval e a Páscoa. Assim, para várias de nós, guardar a Quaresma se resume a evitar prazeres corporais durante esse tempo: jejuar de carne vermelha, não beber e fumar, não festejar etc.

É certo que, mais recentemente, algumas lideranças cristãs têm tentado atualizar o sentido desses jejuns penitenciais e sugerido a adoção de práticas como abster-se da fofoca, maledicência, consumismo, preconceitos e práticas antiecológicas. Confesso que essa última linha de interpretações é até mais simpática que a primeira. No entanto, reconheço, em ambas, limitações fundamentalistas.

A primeira encontra base teológica num platonismo vulgar, no qual corpo, erro e culpa estão diretamente vinculados. Expressa, portanto, a duvidosa teoria do “pecado original”, supostamente relativo às alegrias presentes na sexualidade humana, idealmente limitada à procriação. Quão longe estamos aí do reconhecimento da Graça Originária da Vida e de seu sagrado poder (re)generativo: “Deus contemplou toda a sua criação, e eis que tudo era muito bom” (Gênesis 1.31).

Incomodam-me, na segunda, as limitações individualistas de seus compromissos. É uma ingenuidade achar que bons costumes, apesar de sua importância educativa, superarão as iniquidades estruturantes do sistema-mundo capitalista. Pouco adianta não consumir picanha se a boiada tem passado sobre as terras de indígenas, quilombolas e campesinas. Pouco adianta reciclar canudinhos se monopólios nacionais e internacionais do agronegócio e do petróleo reciclam dinheiro sujo em pesticida e combustível fóssil.

Nossa espécie tem cada vez menos tempo para legar responsabilidades às próximas gerações. Ou superamos este sistema-mundo pela revolução de nossas consciências, presente na Boa Notícia da Salvação no Cristo Cósmico (Romanos 12.2), ou o extrativismo destruirá a sagrada fecundidade da Criação. Urge, portanto, reconhecer que o Carnaval, festa dos corpos, é já o início do tempo quaresmal, culminante na Páscoa (nascimento, morte e ressureição do Cristo Libertador).

Mesmo pessoas cristãs que praticam a liturgia carnavalesca não parecem estar plenamente cientes disso. A relação entre cinza e purpurina não concretiza a antípoda sagrado x profano. Nela, celebra-se, antes, a esperança presente nos ciclos vitais, que estabelecem “tempo para todo o propósito debaixo do céu” (Eclesiastes 3): nascer e morrer, festejar e aquietar-se, trabalhar e descansar.

Se é certo que somos pó e ao pó iremos voltar (Gênesis 3.19), é igualmente certo que, ao participarmos desse ciclo vital em Cristo, realizamos a Esperança geradora da Nova Criação (2 Coríntios 5.17). Essa permanente renovação da vida pede de nós, porém, tempo para olhar os lírios do campo e as aves do céu (Mateus 6.25-34; Lucas 12.27-31).

A cultura da produção e consumo incessantes, fundamentada na ideologia meritocrática e na moral do enriquecimento individual, nos cega para a sacralidade da matéria e destitui nossos cansados corpos da condição de templos do Espírito Santo (1 Coríntios 6.19). Guardar a Quaresma é, nesse sentido, celebrar a mortalidade de tudo, a finitude de nossos corpos e do planeta.

Afinal, reconheçamos: é a tentação de servir a dois senhores – ao Amor-que-tudo-criou-e-sustenta e às riquezas – que nos faz decair na ansiedade sobre os “tesouros na terra”, esquecendo que a vida e o corpo são mais importantes que qualquer propriedade privada (Mateus 6.17-26), que o jejum que Deus deseja é “soltar as correntes da injustiça (…), pôr em liberdade os oprimidos (…) partilhar a comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu” (Isaías 58.6,7; Mateus 25.35-40).

Para quem já aceitou o Bom Convite do Mestre para ser fantasia encarnada, corpo brincante no Carnaval da Graça Originária da Vida (João 10.10), haveria uma forma mais coerente de guardar a Quaresma que se engajar nessa luta, contra canalhas, pelo fim da escala 6 x1 e pela taxação de super-ricos?

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