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Herlon Bezerra

Fé cristã e direitos trabalhistas: história e contradição brasileira

Reverendo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Professor de Psicologia do IF Sertão em Petrolina.
A história acentua a contradição da autonomeada bancada evangélica. Não há base bíblica para suas ações ou seu compromisso com o fim dos direitos trabalhistas.

Querida gente leitora do Brasil de Fato Pernambuco, comemoramos no mês de maio algumas das mais oportunas datas para quem, como nós, busca compreender de que formas as contradições do capitalismo dependente brasileiro matizam, por aqui, as relações entre política e religião: o 1º de Maio, Dia Internacional das Pessoas Trabalhadoras; o 11 de Maio, Dia das Mães; e o 13 de Maio, marco da abolição formal da escravidão no Brasil.

Apesar de ativarem nossa memória coletiva em três diferentes direções, é preciso reconhecer que essas três datas tratam de uma mesma gente brasileira: trabalhadora, preta, religiosa e historicamente explorada e, ao mesmo tempo, invisibilizada pelo capital, indústria cultural e discursos oficiais estatais.

Mais de 80 países fazem memória, no 1º de Maio, aos “Mártires de Haymarket”, mortos pela polícia de Chicago (EUA) em 1886, quando exigiam jornadas de trabalho de no máximo oito horas diárias. No Brasil, a data foi institucionalizada como feriado em 1925 e encontrou raízes ainda mais profundas nas lutas populares ,que no campo e na cidade deram vida à sua classe trabalhadora então nascente.

A data foi ganhando um sentido político cada vez mais concreto a partir da Era Vargas (1930-1945) – particularmente com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que, apesar da lógica tutelar e corporativa, representou também uma resposta à pressão crescente dos movimentos operários organizados, inspirados por ideais socialistas, anarquistas e, em não poucos casos, religiosos.

Estes últimos, embora sejam ainda pouco conhecidos e estudados, atuaram tanto no meio urbano quanto rural, articulando fé cristã e justiça social. Em sua vertente católico-romana, expressavam a influência da doutrina social da Igreja Católica. A Ação Católica e a Liga Eleitoral Católica (LEC), criadas no início dos anos 1930, tiveram significativo papel na Assembleia Constituinte de 1933.

Em âmbito popular, destacou-se o Movimento de Pau de Colher, em atividade no Sertão da Bahia entre 1934 e 1938. Liderado pelo beato José Senhorinho, estabeleceu uma comunidade autossuficiente baseada na partilha e na fé. Considerado subversivo, o movimento foi violentamente reprimido num verdadeiro massacre realizado pelas forças policiais.

Em sua vertente protestante ecumênica e evangélica, foi significativo o papel cumprido pela imprensa confessional. Veículos como “O Jornal Batista” popularizaram na membresia debates morais, éticos e relativos à justiça social então candentes na sociedade. Também fizeram sentir sua influência movimentos jovens, como a União de Estudantes para o Trabalho de Cristo (UTEC) e o Movimento Estudantil Cristão (MEC), integrando a juventude evangélica a ações e lutas sociais em chave progressista.

Em 1932, a 11ª Convenção Mundial das Escolas Dominicais, realizada no Rio de Janeiro, reuniu delegações de cerca de 50 países para discutir educação religiosa e ação social ecumênica no período entre guerras.

A Assembleia Constituinte de 1934 teve entre seus deputados o pastor metodista Guaracy Silveira, eleito pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) de São Paulo. Árduo promotor do socialismo cristão, defendeu pautas como salário-mínimo, o direito à sindicalização, a aposentadoria e o combate ao trabalho infantil.

Esse cenário histórico acentua a contradição do comportamento da autonomeada “bancada evangélica” no Brasil contemporâneo, tema de praticamente todas as nossas conversas aqui. Se, como já demonstramos em outros momentos, não há qualquer base bíblica para suas ações, tampouco a história da presença pública desses grupos cristãos no país poderia explicar seu ativo compromisso com a supressão de nossos direitos trabalhistas.

Em nome de Deus, votam contra o povo de Deus? Em nome da Bíblia, pregam a destruição de tudo que assegura a vida digna da classe trabalhadora? Afinal, o que faz essa bancada ao apresentar posição contrária, por exemplo, à luta pelo fim da escala 6×1, à isenção de IR até R$ 5 mil e à taxação de grandes fortunas?

Será que desconhecem, em pleno mês de maio – quando nos nauseamos com suas hipócritas homenagens, ideologicamente açucaradas, ao Dia das Mães e à abolição da escravatura –, será que desconhecem que as mulheres pretas de baixa renda são, ao mesmo tempo, cerca de 58% das pessoas evangélicas e cerca de 43% da força de trabalho ocupada no país, assumindo justamente os postos de trabalho com menor remuneração e maior precariedade (45,4% delas estão na informalidade: empregadas domésticas, vendedoras informais etc.)?

Será que desconhecem ser justamente em função das condições de vida dessas irmãs – que criam filhos e netos sozinhas, sustentam famílias inteiras com salários miseráveis e trabalham dentro e fora de casa sem reconhecimento – que não podemos celebrar uma inconclusa abolição, sendo mais correto usar essa data para fazer memória da não-reparação, já que a Lei Áurea (de 1888) apenas abandonou a população preta à sua própria sorte, não distribuindo terras (reforma agrária), não indenizando as famílias pelos quase 400 anos de escravização? Será que desconhecem que desde a Lei Áurea até o presente, as pessoas advindas daquelas famílias sofrem com marginalização e criminalização?

Como aceitar, portanto, que foi “em nome da família”, “pela moral”, “pela nação” e mesmo “em nome de Deus” que essa bancada supostamente evangélica votou, em 17 de abril de 2016, a favor do golpe institucional contra a presidenta Dilma Rousseff?

Um golpe misógino que, com o entusiástico apoio dessa bancada nos meses seguintes, revelou sua associação direta com os interesses do imperialismo econômico, destruindo bases sólidas para nossa soberania nacional (a destinação do pré-sal para educação e saúde etc.), o justo enfrentamento aos privilégios do socialmente predatório sistema financeiro e, ao longo dos governos Temer e Bolsonaro, promoveu o maior desmonte de direitos trabalhistas e previdenciários de nossa história.

A Bíblia, que essa bancada empunha como amuleto de votação, tem sido instrumentalizada como escudo ideológico para sua traição ao povo de Deus. Mas não há coerência possível entre o Evangelho de Jesus Cristo e um projeto de sociedade que nega os direitos básicos da classe trabalhadora. Portanto, essa bancada trai o próprio Cristo.

Sobre isso, o primeiro e segundo testamentos são cristalinos. Isaías (10.1-2) brada: “Ai dos que decretam leis injustas, dos que escrevem decretos opressores, para negar justiça aos pobres”. Amós (5.21,24) complementa: “Eu aborreço [a hipocrisia d’] as vossas festas religiosas… que corra o juízo como as águas e a justiça como um ribeiro perene”. Enquanto o apóstolo Tiago (5.4) é enfático: “O salário dos trabalhadores que ceifaram vossos campos e que por vós foi retido clama, e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor dos Exércitos”.

Em coerência com essa tradição bíblica, o movimento do Socialismo Cristão foi desenvolvido, ainda no século 19 por reverendos reformados da Alemanha, França e Inglaterra, onde merecem destaque Charles Kingsley e Frederick Denison Maurice. Seu intento não era outro, mas dar consequência à fé cristã em sua sociedade, lutando contra as estruturas econômicas injustas, por justiça trabalhista, jornada de trabalho limitada, previdência social e liberdade sindical.

Fundamentado nessa mesma tradição, o Conselho Mundial de Igrejas produziu, na Conferência de Bangkok (1973), o documento “Salvação Hoje”, onde afirma: “A salvação que Cristo oferece não é apenas da alma, mas de toda a vida. Ela nos compromete com a luta contra a pobreza, o racismo, a exploração econômica e a dominação imperial”.

Já era esse o entendimento das lideranças protestantes que realizaram, em Recife, a Conferência do Nordeste (1962): “A Igreja de Jesus Cristo é chamada a participar dos processos de mudança social e a tomar partido pelos oprimidos, sob risco de negar a própria fé”.

O Evangelho não é compatível com a crueldade neoliberal. Cristo ressuscitado caminha, hoje, nas ocupações camponesas, nos sindicatos combativos, nas cooperativas populares, nos mutirões de solidariedade, nos cantos da gente que resiste e partilha. A fé cristã precisa estar ali também. Do contrário, terá se tornado apenas mais uma engrenagem no motor do sistema que crucifica, todos os dias, gente que merece “vida em abundância” na Esperança do Cristo (João 10.10).

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