Querida gente leitora do Brasil de Fato Pernambuco, estamos chegando a setembro, tempo da “boa nova andar nos campos”, como afirma a teopoética de Ronaldo Bastos em Sol de Primavera, lindamente popularizada na interpretação de Beto Guedes.
De fato, desde 1989, quando o Patriarca da Igreja Ortodoxa Dimitrios I inaugurou a iniciativa, o cristianismo ecumênico global tem celebrado, entre 1º de setembro e 4 de outubro, o Tempo da Criação. Assumido pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e, desde 2015, pela Igreja Católica Romana (ICAR), esse movimento envolve hoje mais de 2,2 bilhões de pessoas.
Membras das mais variadas denominações cristãs, essas pessoas têm anualmente participado de uma jornada espiritual e profética que cultiva, afirma a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), o compromisso cristão com a integridade da Criação, com a justiça climática e com a esperança ativa num futuro sustentável para todas as formas de vida, ajudando-nos a confrontar o negacionismo e sua insensibilidade diante da crise ecológica e, assim, a superar espiritualidades fundamentalistas e idólatras do mercado.
Apesar de recente, o movimento do Tempo da Criação, não se resume a mero modismo litúrgico, apresentando profundo enraizamento na Bíblia e tradição.
Logo nas primeiras páginas das Escrituras, lemos que Deus confiou à nossa espécie o Jardim do Éden, orientando-nos a “cultivar e guardar” a Criação (Gênesis 2:15). Carta magna de nossa ecoteologia, esse texto faz uso do verbo hebraico “shamar” (guardar), o mesmo utilizado para tratar do devido cuidado com a aliança de fé abraâmica.
Diferente, pois, do que certa tradição interpretativa afirma, dificilmente se pode compreender esse texto como um mandado de domínio sobre o mundo. Pelo contrário, como nos ensina o biblista Carlos Mesters, nossa espécie é nele convocada a se reconhecer “simples criatura”, parte da “comunidade de vida” com quem partilha “origem comum: o pó da Terra”.
Somos ali, portanto, antes que coroa da Criação, um “elo da corrente da vida”; com a diferença de “sermos conscientes” e de, por isso, compartilharmos a missão do próprio Amor-que-tudo-criou-e-sustenta: “manter as condições de sustentabilidade de todos os ecossistemas que compõem a Terra”.
Mesters insiste: antes que legitimar a dominação, a Bíblia ensina a respeitar a Terra como mãe-geradora de todas as formas da vida (Gênesis 1:24). A aliança sagrada é estabelecida com todas elas, não somente conosco. Sem elas, “somos uma família desfalcada”.
Nas Leis, vemos estabelecido, no princípio-Jubileu, que “A terra guardará um sábado ao Senhor” (Levítico 25:2), isto é: terá um tempo para seu descanso e reparação agroecológica. Não é metáfora!
Trata-se de uma ética socioeconômica revolucionária em seu respeito à circular sacralidade dos ciclos vitais, capaz de desmontar a lógica do lucro infinito e, desse modo, da acumulação e dívida perpétuas. Sugiro a quem desejar aprofundamentos, a consulta aos trabalhos de José Comblin (Teologia da Enxada) e de Norman Wirzba (Teologia da Alimentação).
Essa tônica ecossocial se mantém uníssona em toda a literatura profética. Jeremias (19:4) esbraveja contra os que “enchem esta terra de cadáveres inocentes”. Isaías (24:5) acusa que “a terra está contaminada pelos seus próprios habitantes; afinal, a humanidade (…) quebrou a aliança eterna” com a vida.
Amós e Miquéias, por sua vez, associam a violência social à desertificação e secas devastadoras: a esterilização do solo testemunha os efeitos do pecado presente na injustiça e racismo socioambientais. Essa tradição ecoteológica transborda, renovada, nos Evangelhos, Atos dos Apóstolos, cartas e literatura apocalíptica constitutivas do Segundo Testamento.
O Mestre Nazareno, convicto andarilho – curtidor de praias, plantações, montes, prados, campinas e desertos –, reconheceu na beleza das aves do céu e lírios do campo a fonte profunda de seu ensino (Mateus 6).
A tradição paulina encontrou no Cristo Cósmico o núcleo de universalização da Esperança Messiânica judaica: uma Restauração da Criação que entrelaça a salvação de nossa espécie com a do planeta. Vejam-se, em especial, o Evangelho de João e as cartas aos Romanos e Colossenses.
Na cristologia apocalíptica, essa restauração cósmica ganha a forma de “novo céu e nova terra”, “Cidade Santa” onde não se vê “templo algum”, já que “Deus agora está entre os homens” e lhes “enxugará dos olhos toda a lágrima (…) porquanto a antiga ordem está encerrada” pela Força Sagrada que faz “novas todas as coisas!” (Apocalipse 21).
Que não deixemos de perceber o quanto, do Primeiro ao Segundo Testamento, as denúncias dos riscos de catástrofes socioambientais apresentam-se sempre dialetizadas pelo anúncio ativo e construtivo da Esperança Cósmico-Messiânica em um Mundo Novo.
Foi certamente nessa tradição que Paulo Freire, consultor do Departamento de Educação do CMI entre 1970 e 1980 (Genebra, Suíça), encontrou inspiração para reconhecer no par denúncia-anúncio o núcleo da práxis revolucionária, prenhe da coragem que nasce da dialética entre o “pessimismo da inteligência” e o “otimismo da vontade”, segundo a formulação de Gramsci inspirada em Romain Rolland.
É também nessa tradição que, em suas treze teses sobre a catástrofe (ecológica) iminente e as formas (revolucionárias) de evitá-la, Michael Löwy encontra motivos para, “ao contrário dos pretensos ‘colapsólogos’, que proclamam em alto e bom som que a catástrofe é inevitável e que qualquer resistência é inútil”, anunciar que “o futuro permanece aberto”, sublinhando, em memória a Bertolt Brecht, que “Aquele que luta pode perder. Aquele que não luta já perdeu”.
Em diálogo com a tradição teológica cristã, a Teologia da Cultura, de Paul Tillich, nomeia essa dialética como fé, cuja dinâmica é ontológica antes que subjetiva e, portanto, não se resume à ausência de dúvida ou à obediência infantil a teorias ou lideranças religiosas.
Trata-se de uma experiência, imediata e material/corporal, da Graça Originária, fonte da Coragem de Ser, isto é, da “aceitação” de nossa condição de Criação-Amada, “independente de qualquer condição prévia moral, intelectual ou religiosa”. Essa experiência “transcende infinitamente o próprio eu individual” e nos alerta para a verdade do “Deus que aparece quando Deus desapareceu na ansiedade da dúvida”.
Essas ideias ganham expressão litúrgica numa das orações ecoteológicas que nos foram legadas por Jaci Maraschin, Luz Adorável: “Ó luz radiosa e multiforme, brotada das águas do batismo e descida do céu: nós te adoramos / Ó luz sideral e esplendorosa no meio da nossa noite oculta de tristeza e de dor: nós te adoramos / Ó luz matinal e jubilante, qual fogo de amor sobre a distância de todos os mortais: nós te adoramos / Ó luz infinita e aconchegante, cantada na paz do nosso encontro, no interior e ao redor: nós te adoramos”.
Revelação contemporânea das infinitas verdades evangélicas, a mensagem do Tempo da Criação vem ajudando nossas comunidades em todo o mundo a considerar com maior seriedade a densidade ecossocialista de nossa fé cristã.
Nesse sentido, importa estarmos atentas ao fato de que, uma vez que “o mundo jaz no maligno” (1 João 5:19), devemos ser “simples como as pombas, prudentes como as serpentes” (Mateus 10:16). Portanto, estejamos alertas às falsas soluções apresentadas pelo sistema.
Vivemos numa época em que até as mais devastadoras corporações extrativistas dizem ter abraçado a causa “verde”. Mas que tipo de “ecologia” poderia se desenvolver nos estreitos limites do capitalismo? O profundo respeito pela sacralidade da vida estaria plenamente realizado no “capitalismo verde”, ideológica camada de tinta verde meramente jogada sobre a velha máquina de extração e exploração?
Faz-se cada vez mais atual o sentido profundo da afirmação de Chico Mendes: “ecologia sem luta de classes é jardinagem”. Diversas outras ativistas e pesquisadoras, em todo o mundo – Ulrich Brand e James Thornton, entre elas –, têm nos alertado, mais recentemente, sobre os perigos residentes na ideologia do chamado “capitalismo verde”.
Esse é mais um exemplo concreto do quanto meias verdades expressam, ao fim, mentiras completas. O “capitalismo verde” não passa de estratégia de marketing para empresas que, aproveitando-se da culpa individual diante dos riscos ambientais de um mundo que nos resume a consumidoras, vendem-se como comprometidas com a sustentabilidade, mas continuam poluindo e devastando.
São petrolíferas que patrocinam conferências climáticas; bancos que lançam fundos “verdes” e continuam financiando o desmatamento; fabricantes de agrotóxicos e pesticidas que falam de agrodefensivos; é o agronegócio sem reforma agrária e avançando contra os territórios indígenas, quilombolas, ribeirinhos…
Capitalismo “verde” sem justiça social e mudança estrutural é ilusão. Não é possível “ecologizar” a sanha de lucro. O Mestre nos ensinou de modo cristalino: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mateus 6:24).
Por isso, a fé cristã ciente de sua dimensão ecossocialista deve erguer sua voz profética em favor da verdade e da coerência: não basta “salvar o planeta” nos slogans enquanto se mantém intocada a lógica predatória – pois extrativista e exploratória – que esgota a fecundidade da terra e das pessoas. A conversão ecológica tem de ser também uma conversão econômica e social.
A esperança cristã ecossocialista não é um consolo barato. O Tempo da Criação é tempo de conversão, de mudança de rota, de atender ao clamor da Criação (da qual somos parte!), até que a Terra respire livre: “E vi um novo céu e uma nova terra (…) A morte já não existe” (Apocalipse 21:1,4).