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A interseccionalidade das memórias negras: práticas curativas e resistência feminina

Por Jenifer Alexandre*, Suelen da Conceição Rodrigues de Sales** e Nathali Gomes da Silva***

A ancestralidade negra se manifesta no livro 'Nossas Lembranças', de Rosivaldo Sobrinho, tanto por meio das personagens quanto nos ritos que atravessam gerações

A literatura negra brasileira tem sido um instrumento poderoso de resistência, memória e ancestralidade, revelando trajetórias marcadas pela exclusão social, mas também pela força e resiliência das mulheres negras, guardiãs de saberes ancestrais sobre a terra, as ervas e práticas curativas. É nesse contexto que o livro Nossas Lembranças, de Rosivaldo Gomes de Sá Sobrinho, se insere, com uma escrita envolvente e detalhada, conduzindo o leitor pelas memórias de Itacaré, cidade do litoral sul da Bahia, entre as décadas de 1920 e 1980.

Capa do livro Nossas Lembranças | Foto: Acervo pessoal

O romance histórico se desenrola com riqueza cultural, entrelaçando realidade e fantasia em narrativas profundamente enraizadas na afro-brasilidade, permeadas por misticismo, magia, saberes tradicionais e celebrações comunitárias. A história destaca a importância da ancestralidade negra e das práticas curativas, que contextualizam a etnobotânica, pois as plantas e os saberes populares são mais do que elementos naturais – são símbolos de resistência, cura e conexão entre o material e o espiritual.

Dona Joana, personagem que domina os segredos das folhas e das rezas, nos lembra as tantas benzedeiras e curandeiras que mantêm vivas as tradições afro-indígenas no Brasil. Já Sebastiana, uma mulher à frente de seu tempo, desafiou as imposições sociais, assim como tantas mulheres negras que, apesar das adversidades, foram protagonistas de suas próprias histórias.

A ancestralidade negra se manifesta na obra tanto por meio das personagens quanto nos ritos que atravessam gerações. Um exemplo é Dona Joana (Joana Angélica), uma mulher de grande conhecimento sobre ervas e suas propriedades curativas. Além de feirante, Dona Joana é uma guardiã dos saberes tradicionais, transmitindo-os com sabedoria e afeto.

A personagem Joana nos remete a várias Joanas que conhecemos na vida. Como nossas ancestrais matriarcais, detentoras de conhecimentos botânicos e/ou da religiosidade da benzeção. O conhecimento ancestral sobre ervas medicinais, aliado à prática religiosa, desempenha um papel crucial na preservação da saúde coletiva. Além do saber empírico das funcionalidades das plantas, as práticas de rezadeiras e curandeiras contribuem para a prevenção de enfermidades, protegendo a comunidade e garantindo a continuidade de tradições que unem cuidado, fé e ancestralidade, de acordo com Maria Assunção Santos Oliveira.

O capítulo “Banho de folhas, proteção” revela a importância das plantas na espiritualidade e na medicina popular. Nele, Dona Joana instrui Francisco a tomar um banho de ervas e chás para proteção e pede à sua filha para preparar. Para evitar spoilers, não entraremos em detalhes sobre a cena seguinte, mas ela é carregada de simbolismo, reforçando a relação entre os saberes ancestrais e a cura: “Ela voltou rapidamente ao terreiro, colheu uns galhos de pinhão-roxo, arruda e vassourinha mufina. Voltou ao aposento fazendo umas orações… balançava os galhos cruzando o ar muitas vezes seguidas”

Esse trecho evidencia a conexão entre natureza e espiritualidade, onde as ervas não são apenas plantas, mas elementos de proteção, renovação e resistência. Outra figura feminina marcante é Sebastiana, apresentada no capítulo “Uma mulher à frente do seu tempo “. Negra e pobre, foi forçada a um casamento arranjado, mas recusou-se a aceitar seu destino e fugiu, rompendo com as imposições sociais da época. Sua trajetória é um símbolo de resistência, pois desafiou normas que limitavam as mulheres a funções domésticas e à maternidade.

Sebastiana tornou-se referência na cultura popular reconhecida por sua presença vibrante nas rodas de samba e nas festas de São Sebastião, onde sua energia era insubstituível. Raquel Weiss e Winnie Bueno ao refletir sobre a resistência das mulheres negras frente às imposições sociais, especialmente nas questões de gênero e identidade, discutem como o feminismo negro propõe novos paradigmas ao destacar o pensamento e a experiência das mulheres negras, muitas vezes suprimidos na historiografia.

O artigo das autoras nos convida a refletir sobre as histórias das personagens de Nossas Lembranças, apresentadas como ficção, mas inspiradas nas lutas e resistências de mulheres reais que habitam as memórias do autor e se entrelaçam com as vivências de tantas outras mulheres negras. A narrativa vai além do resgate de memórias individuais e coletivas ao evidenciar a ancestralidade como elemento central da identidade negra. Personagens como Dona Joana e Sebastiana simbolizam a força, as conquistas e a resistência das mulheres negras, cujas trajetórias ecoam até os dias de hoje. Preservar essas histórias é, assim, manter viva a memória de um povo que, diante das adversidades, resiste, se reinventa e reafirma suas raízes, sua cultura e sua existência.

Para saber mais

OLIVEIRA, Maria Assunção Santos. A cor da benção: ancestralidade, essência, segredos. 2019.

SOBRINHO, Rosivaldo Gomes de. Nossas lembranças. Maringá-PR: Viseu, 2023.

WEISS, Raquel; BUENO, Winnie. Pensar o mundo na encruzilhada: mulheres negras e a teoria social. Civitas – Revista de Ciências Sociais, v. 24, p. e-45093, 2024.

*Jenifer Alexandre é bióloga, mestranda em Biodiversidade e licencianda em ciências biológicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atua como bolsista no projeto Prolicen. Seus interesses incluem ciências ambientais e sociais.

**Suelen da Conceição Rodrigues de Sales é licencianda em ciências biológicas, no Centro de Ciências Agrárias, Campus 2, da UFPB. Bolsista do projeto de Prolicen “Formação Docente na perspectiva da Educação das Relações Étnico-raciais: contribuindo para as discussões dos aspectos exigidos pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008”.

*** Nathali Gomes da Silva é doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora lotada no Departamento de Ciências Fundamentais e Sociais do Centro de Ciências Agrárias da UFPB.

*A opinião contida neste texto não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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