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Coluna escrita por integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal da Paraíba (Neabi-UFPB) e por colaboradores externos que lecionam e pesquisam so...ver mais

Ana Maria Gonçalves: a primeira imortal negra da Academia Brasileira de Letras

Por Jusciney Carvalho Santana*, Lígia dos Santos Ferreira** e Renata de Oliveira Batista Rodrigues***

É um marco que rompe com uma estrutura forjada no patriarcalismo e no racismo

O anúncio de novos imortais na Academia Brasileira de Letras (ABL) sempre deveria causar furor e comoção nacional. Mas nem sempre (nos) surpreende. Há um quê de conservadorismo que marca essa tão importante entidade no nosso país. No mês de julho, a ABL completou 128 anos de existência, instituição que tem buscado reverenciar e legitimar nossos escritores, cineastas, jornalistas, cientistas e também artistas reconhecidamente renomados.

Do total de imortais da Academia, é preciso uma inflexão: um espaço ocupado majoritariamente por homens brancos, visto que, desde a sua fundação, em 20 de julho de 1897, somente a partir dos anos 1970 foi possível considerar a indicação de mulheres entre seus novos membros. Foram nada menos que 73 anos sem a presença de mulheres na instituição.

Mas será isso um reflexo da produção literária? No Brasil e no mundo? Importa refletirmos sobre essas assimetrias? E quando a questão de gênero se soma ao debate de raça? Temos quantos negros, quantas negras reverenciadas na ABL? E como é possível rompermos com essa lógica excludente (também) entre os que são legitimados como imortais?

Certamente temos um caminho de muitos desafios, de muitas desigualdades étnico-raciais e de muitos conflitos. Ocupar um lugar de destaque em meio ao mundo de privilégios que a branquitude opera, deve tornar-se possível de ser concretizado. No caso brasileiro, temos avançado muito a partir da nossa própria legislação. Há mais incentivos ao protagonismo negro em diferentes campos do conhecimento. Não somente pela definição de reserva de vagas em editais de seleções, que resulta na ampliação de oportunidades e consequente mobilidade social. 

A juventude negra que compreendeu os ditames de uma sociedade fundada na hierarquia racial exige reparação, ainda que se comece pela demarcação de cotas. O Estatuto da Igualdade Racial, lei federal sancionada em 2010, ainda carece de um planejamento estratégico, com vistas à própria avaliação e mudanças de rota de seus objetivos fundantes, no entanto, é preciso reconhecermos que mudanças estão acontecendo: no cinema, nas artes, na televisão brasileira, nas universidades. Ainda é cedo para comemorar, mas a entrada de Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras é um alento nesses tempos tão sombrios. 

As travessias transatlânticas narradas por ela no seu renomado Um Defeito de Cor agora estão imortalizadas e seguramente alcançará mais pessoas interessadas em conhecer essa obra. O mérito (ah, sempre a meritocracia como princípio) de Ana Maria Gonçalves não tem a ver com o número de páginas de seu romance ficcional, mas porque ela conseguiu o feito de retratar, com riqueza de detalhes, a realidade social brasileira mesclando imagens assombrosas do nosso passado descortinado de uma maneira tão visceral quanto necessária, sob um olhar consciente de sua ancestralidade e seu compromisso ético e político com a negritude.

Ana Maria Gonçalves é simplesmente a 13ª mulher da Academia e a primeira imortal negra. É um marco que rompe com uma estrutura forjada no patriarcalismo e no racismo. Ocupar esse (novo/velho) lugar é uma espécie de redenção e também de promessa de um novo tempo.

Novo tempo, tempo de um romance histórico fortalecendo o atual contexto em que a história nacional vem sendo recontada, resgatada de um apagamento meticulosamente planejado, em que os protagonismos negros e indígenas foram duramente silenciados. Kehinde é um dos Brasis. Brasil forjado no sequestro no continente africano, na travessia pelo Atlântico, nas vivências no solo brasileiro, no desejo de retorno. E a busca pelo filho? Onde está esse brasileiro? A busca pelo filho perdido dialoga com esse limbo em que as brasileiras e os brasileiros se enxergam constantemente, fruto, muito provavelmente, das grandes lacunas criadas na nossa história.

E essa nossa história, com Ana Maria Gonçalves, evidenciou a potência da Bahia e do seu povo nas lutas, destacadas na sua obra, que em 2023 inspirou uma exposição no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador. “A exposição premiada reúne uma impressionante coleção de cerca de 370 obras de mais de 100 artistas brasileiros e internacionais, distribuídas em 10 núcleos, correspondentes aos 10 capítulos do livro. Entre os temas abordados estão o processo de escravização dos negros, as resistências afro-diaspóricas nas Américas, o papel das mulheres, a religiosidade e a África contemporânea”, conforme noticiado sobre a exposição no Muncab.

Essa exposição, de fato, faz todo o sentido de ter sido inaugurada na reabertura desse importante museu baiano. E, além de estar amplamente retratada em Um Defeito de Cor, são muitas as representações da Bahia na literatura brasileira. Contudo, entendemos que é muito significativo que a primeira mulher negra a se tornar imortal, tenha imortalizado, nos seus escritos, uma Bahia de enfrentamentos, de estratégias, dando centralidade à Revolta dos Malês, que antes era ofuscada nacionalmente, enquanto forte e amplo movimento de libertação do Brasil. É relevante do ponto de vista social, mas sobretudo político. 

Enquanto sociedade precisamos garantir mais espaço na ABL. Precisaremos exigir a ampliação de cadeiras para contarmos com as presenças de tantas outras escritoras negras que fazem um movimento essencial na literatura brasileira: o enfrentamento ao racismo e a descoberta potente de um novo mundo, a partir da leitura e por meio da escrita. Como muito lindamente poetizou Cristiane Sobral: “Não vou mais lavar os pratos, nem vou limpar a poeira dos móveis. Sinto muito. Comecei a ler”.

Para saber mais

GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. 25. ed. Rio de Janeiro: Record, 2020.

SOBRAL, Cristiane. Não Vou Mais Lavar os Pratos. Brasília, 2016.

MUNCAB. Exposição “Um Defeito de Cor”. 2023.

*Jusciney Carvalho Santana é pós-doutora em Estudos Étnicos, doutora em Educação, professora associada do bacharelado em humanidades do Campus dos Malês da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Docente permanente Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Posafro/UFBA). Autora do livro “Tem Preto de Jaleco Branco: os primeiros 10 anos de políticas afirmativas na Faculdade de Medicina da UFAL”. Colaboradora no projeto de extensão Identidade Afro-Brasileira e Enfrentamento ao Racismo: construindo novas relações sociais”, vinculado à PRAC/UFPB, sob a coordenação da professora Ana Cristina Silva Daxenberger e do professor Rosivaldo Gomes de Sá Sobrinho.  E-mail: [email protected]

**Lígia dos Santos Ferreira é doutora em Estudos Literários, professora associada do curso de letras-libras e do mestrado profissional em Letras da UFAL e ex-coordenadora do Consórcio Nacional de Neabs, Neabis e grupos correlatos (Conneabs) da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN). E-mail: [email protected]   

***Renata de Oliveira Batista Rodrigues é pós-doutora em Literatura, doutora em Letras, professora adjunta do curso de letras do Campus dos Malês da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Coordena o projeto Processos de Formação de Escritores e Leitores Literários”. E-mail: [email protected]

****Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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