Por Felipe Silva Coutinho*
A memória de um povo é o que alicerça sua identidade. No entanto, em nossa história, há lacunas, vozes silenciadas e espaços demolidos que precisam ser resgatados e ressignificados. A Paraíba, com sua rica e complexa trajetória, não é exceção. Em um momento crucial, em que se discute a preservação de nossa herança, a pergunta que ressoa: onde está o Museu da Diáspora Negra?
Para onde vai o Museu da Diáspora Negra: valorização ou apagamento?
Anunciado em novembro de 2024 para celebrar o Mês da Consciência Negra, o Museu da Diáspora Negra teve um revés. O projeto, que seria instalado no Casarão dos Azulejos, não avançou em 2025. Em vez disso, o local abrigará o Museu da Justiça Eleitoral da Paraíba.
Recentemente, a construção do Museu da Diáspora Negra foi confirmada em um novo local: o antigo prédio da Escola Superior de Guerra, em frente à Praça Barão do Rio Branco, que funcionou durante a ditadura militar. A escolha desse espaço levanta um questionamento importante: o local, com seu passado ligado a um período de repressão, garantirá a valorização da história do povo negro ou, ironicamente, resultará em mais um apagamento histórico?

A mudança de nome e a diluição da história
Notícias recentes indicam que o governador João Azevêdo (PSB) autorizou a licitação para a construção do museu. Entretanto, o projeto, que antes se chamava Museu da Diáspora Negra, foi renomeado para Museu da Diáspora Negra e Etnias Paraibanas. O objetivo oficial é promover uma reparação histórica, dando visibilidade às culturas da população negra, dos povos indígenas e das comunidades ciganas do estado, que foram frequentemente apagadas em favor da cultura europeia.
A mudança no nome, no entanto, pode ser vista como um contraponto: a inclusão de outras etnias em um mesmo espaço pode diluir a profundidade da história de cada grupo, limitando as ricas narrativas que cada povo carrega. A ideia original de um museu focado exclusivamente na Diáspora Negra daria mais espaço para aprofundar suas próprias experiências, enquanto o novo formato, mais abrangente, corre o risco de sobrepor histórias distintas que mereceriam seus próprios espaços de exposição e representação.
A urgência de um espaço para a memória negra
Diante da iminência da inauguração do Museu da História da Paraíba e do fechamento temporário do Museu da Cidade — ambos focados na história dos governantes estaduais, dentro da perspectiva eurocêntrica —, a ausência de um espaço dedicado à história e à cultura da população negra se torna ainda mais evidente. O Museu da Diáspora Negra não seria apenas um acervo; seria um ato de resistência, um farol para iluminar as narrativas que foram intencionalmente apagadas ao longo dos séculos.
A população negra na Paraíba deixou marcas profundas, visíveis em cada canto do estado. É, portanto, um dever moral e social concretizar um espaço que honre a contribuição daqueles que, com seu sangue e suor, ergueram e moldaram nossa sociedade. É uma oportunidade para ressignificar a história de figuras notáveis como Gertrudes Maria, uma mulher que foi escravizada e lutou durante 14 anos por sua liberdade na justiça; Calecina Rodrigues, a primeira mulher dona de uma tipografia na Paraíba ainda durante o século 19; o abolicionista Cardoso Vieira, que lutou pela liberdade da população negra; o poeta e advogado Eliseu César, imortalizado na Academia Paraibana de Letras; e o pai da cenografia moderna brasileira, Tomás Santa Rosa. Inúmeros outros nomes, muitas vezes anônimos nos livros de história, merecem ser lembrados e reverenciados.
Mapeando a história esquecida
Além das personalidades, o museu seria um guardião da memória de lugares simbólicos, hoje invisibilizados ou destruídos. Precisamos dar luz ao Pelourinho (atual Praça Barão do Rio Branco), local que foi um marco de dominação, mas também de resistência. Sendo ressignificado pela população negra com chorinho e samba, tornou-se um ponto de encontro pra cultura paraibana, reconhecida como Patrimônio Imaterial de João Pessoa em maio de 2025; à Igreja do Rosário dos Homens Pretos, que foi lamentavelmente demolida em 1923, no Centro Histórico de João Pessoa, apagando um importante ponto de referência religiosa e comunitária; à Tragédia da Lagoa de 1975, um episódio doloroso que reflete a negligência e a violência contra a população negra e pobre em plena ditadura militar; à Matinha e à Rua do Grude, espaços que foram, por muito tempo, vibrantes pontos de encontro de coco de roda e maracatus, e tantas outras manifestações culturais e de solidariedade para a população escravizada e liberta. Esses locais, carregados de significado, precisam ser mais do que meras notas de rodapé; eles são a essência da nossa história.
A demanda por esse resgate histórico não é uma novidade. O trabalho de afroturismo que é realizado pela Apuama Turismo na Paraíba é um exemplo concreto de como a população local, turistas, estudantes, e em especial a comunidade negra, busca e valoriza essas narrativas. O afroturismo não é apenas sobre visitar lugares; é sobre contar histórias, reconectar pessoas com a herança ancestral, criar pontes entre o passado e o presente e projetando um futuro melhor. Essa iniciativa mostra que há um público ansioso por conhecer e celebrar a Paraíba para além dos roteiros turísticos tradicionais.
Por isso, a criação de um Museu da Diáspora Negra é mais do que a construção de um espaço de memória. É um passo fundamental para curar as feridas do passado, para promover a justiça social e para garantir que as futuras gerações compreendam a totalidade de sua herança cultural. É um gesto de reparação e de reconhecimento. Diante de tanta história apagada, a pergunta do título dessa matéria não é retórica; é um chamado à ação. A Paraíba, com sua riqueza histórica e cultural, tem o dever em dar resultados mais concretos para a sociedade. E essa resposta deve ser a construção de espaços que finalmente celebrem a contribuição vital e a resiliência da população negra. Afinal, uma história só é completa quando todas as suas vozes são ouvidas.
Para saber mais
BRASIL/MTur; Unesco. Guia do Afroturismo no Brasil: roteiros e experiências da cultura afro-brasileira. Brasília: Ministério do Turismo, 2025.
COUTINHO, Felipe Silva. Apuama Afroturismo na Paraíba: educação antirracista e turismo pedagógico. Acesse aqui.
TOLENTINO, Atila Bezerra. Museologia comunitária e social na Paraíba: memoriação, lutas e resistências. Ritur – Revista Iberoamericana de Turismo, vol. 13, n.º 5. Fev. 2023, p. 126-148.
*Felipe Silva Coutinho é professor de artes visuais, designer gráfico e guia de turismo. Representante do afroturismo na Paraíba, desenvolve roteiros turísticos dentro da perspectiva da educação antirracista e do turismo pedagógico, atuando em áreas urbanas, comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas. Instagram: @apuamaturismo
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.
***Artigo atualizado às 20h52 do dia 9 de setembro para adicionar a seção “Para saber mais”, que é uma característica desta coluna
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