O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 35 anos e poderíamos facilmente comemorar escutando um forrozinho de festa junina do Jackson do Pandeiro, em parceria com João do Vale, que em 1961 escreveram essa música linda sobre Brasília:
“O Brasil está construindo
Mais uma grande cidade
Que antigamente foi sonho
E hoje é realidade
Tá ficando povoado
Todo o meu Brasil central
Riqueza próprias e glória
Trouxe a nova capital
O planalto é tão lindo
Que a gente tem a impressão
Que bem ali bem pertinho
O céu encosta no chão
Quem tiver de malas prontas
Pode ir que se dá bem”
Hoje, esses artistas não cantariam Brasília a partir desse lugar da beleza e da riqueza que acolhe todas as pessoas. A capital do Brasil tem sido um exemplo de desigualdades e violação de direitos humanos, incluindo de crianças e adolescentes. João do Vale foi um compositor crítico, que retratou em suas diversas músicas (com o balançado do forró e do samba) as desigualdades sociais e as violências cometidas contra seu povo desde a infância.
Mas saiba, seu João do Vale, que o sonho de Brasília se tornou realidade apenas para alguns e é um pesadelo para parte importante da população que vive no Distrito Federal (DF).
No DF, em 2025, há pelo menos 121 “meninos e meninas de Jaçanã” vivendo em situação de rua, como João do Vale também cantou:
“O menino de Jaçanã
Vende bala, vende pão
Pede esmola e pede pão
Pra comer, pra viver
Ninguém vê, ninguém quer ver
O menino que anda só
Com os pés rachados no pó
E a esperança no olhar
Vai cantando sem cantar
Vai chorando sem chorar
Dorme cedo, acorda cedo
Sem brinquedo, sem luar
Quando chove, ele se molha
Quando venta, sente frio
Não tem mãe, não tem ninguém
O asfalto é seu navio
A cidade é sua vida
A calçada é seu lugar
Ele dorme todo dia
Com o sonho de voar”
O último levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE sobre trabalho infantil mostrou que o DF tinha em 2023 18.422 crianças e adolescentes nesta situação. No que tange a outras violências cometidas contra esse grupo da população, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, o Distrito Federal contou com 237 casos de abandono de incapaz em 2023. Significou um aumento de 29,5% comparado a 2022, e levou o distrito a se tornar a 7ª Unidade da Federação (UF) com maior taxa de incidência a cada 100 mil pessoas da respectiva faixa etária. O abandono material subiu 266,7% em 2023 em comparação com 2022. No mesmo ano, o DF ficou em 3º lugar em taxa de incidência de exploração sexual por pornografia infanto-juvenil e em 5º por maus tratos de crianças e adolescentes. Além disso, a taxa de estupro de crianças e adolescentes foi de 102 por mil habitantes da mesma faixa etária (0 a 17 anos).
O governo do Distrito Federal (GDF) está longe de levar a sério a prioridade absoluta de crianças e adolescentes no financiamento público e no acesso às políticas públicas previstas na Constituição Federal de 1988, principalmente quando são meninas e meninos de periferias, e que em sua maioria são negras.
Um exemplo é a região administrativa (RA) do Itapoã que, de acordo com a Pesquisa Distrital de Amostra de Domicílios Ampliada de 2024 (Pdad-A), tem uma população urbana de 67.021 pessoas e, destas, 70,3% se identifica como negra (parda e preta) e mais de 33% está na faixa etária de 0 a 18 anos. Contudo, não há nem um centro de educação infantil público na região, há apenas uma escola de ensino médio, não tem Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), o transporte público não é suficiente para a demanda, entre outras problemáticas.
O Itapoã não fez parte do sonho de Brasília, assim como tantas outras RAs das periferias do DF. Desse modo, ficam escanteadas não só em termos territoriais, mas também no que diz respeito ao acesso aos direitos humanos em sua integralidade. E as crianças e os adolescentes são os mais afetados pela falta de políticas sociais básicas que impactam seu desenvolvimento e suas trajetórias.
Em termos do orçamento público, a partir do Portal da Transparência do DF é possível visualizar que em 2024 o GDF autorizou R$ 7,4 bilhões de recursos direcionados para a infância e adolescência e desse total mais de R$ 500 milhões não foram executados. Em 2023, mais de um bilhão do recurso autorizado também não foi executado. No que diz respeito especificamente ao Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, somente 19,3% do autorizado foi executado em 2024 e 4,5% em 2023.
Em todo o DF, há apenas um Centro de Atendimento Integrado a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e o orçamento público autorizado em 2025 para manutenção e funcionamento dessa unidade foi de R$ 276 mil. Desse total, foram empenhados apenas R$ 31,5 mil e executados R$ 6,4 mil até julho desse mesmo ano (o que significa 2,3% do total). Em 2024, a execução orçamentária do ano todo não foi tão diferente, foram autorizados R$ 236,8 mil e executados R$ 12,4 mil (5,2% do total).
Uma infância e adolescência saudável e feliz se faz com acesso à educação de qualidade, à saúde, à cultura, ao esporte, ao lazer, à alimentação adequada, à proteção, à liberdade de identidade (seja racial, de gênero, de orientação sexual e tantas outras possíveis). Se faz sem violências e violações de direitos. Para isso, é necessário que o orçamento público seja direcionado prioritariamente para políticas públicas que atendam a quem mais precisa. A história de João do Vale, cantada na música “Minha História” em 1965 ainda se repete: “Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá / Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar / A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar / E quando era de noitinha, a meninada ia brincar / Vixe, como eu tinha inveja, de ver o Zezinho contar: – O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar.”
Aqui na capital do país, o ECA ainda não se materializou na vida de todas as crianças e adolescentes e a disputa deve ser para que todas elas possam “brincar no vento leste, mesmo quando a lua fizer o claro, com segurança, liberdade e assobios de alegria”.
*Thallita de Oliveira é assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.