Ouça a Rádio BdF
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é uma instituição internacional, orientada pelos movimentos populares e políticos da Ásia, Africa e A...

Dez pontos estruturais sobre a economia brasileira

Os dez pontos estruturais destacados ao longo deste texto, quando considerados em conjunto, formam um quadro interligado que potencializa as mazelas de um país

Por Marcelo Depieri e Cristiane Ganaka

Este texto visa analisar dez pontos estruturais da economia brasileira que, ao longo do tempo, têm se mostrado como obstáculos significativos para a efetivação de um projeto de desenvolvimento social e econômico voltado para a classe trabalhadora. A economia brasileira, com sua estrutura complexa e desigual, apresenta uma série de desafios que, se não forem enfrentados, continuarão a reproduzir as mazelas do subdesenvolvimento. 

  1. Rigidez Fiscal. Atualmente, o que rege a política fiscal no Brasil é o chamado Novo Arcabouço Fiscal (NAF), aprovado no primeiro ano do terceiro governo Lula, em 2023. O NAF preconiza que o governo brasileiro apresente metas de superávit primário muito rígidas e limites para o crescimento das despesas públicas, de 2,5% a.a, independente de quanto a economia brasileira cresça. Apesar do avanço em relação à política fiscal anterior – o chamado Teto dos Gastos Públicos, que congelava as despesas públicas, sendo reajustadas somente pela inflação -, a atual política fiscal ainda apresenta rigidez seguindo os preceitos do neoliberalismo, em que eleva as metas fiscais como prioritárias.
  1. Política Monetária. Há muitos anos, o Brasil adota uma das maiores taxas de juros e em muitos momentos lidera esse ranking: a alta taxa de juros aumenta o custo do crédito, prejudicando o consumo e o investimento produtivo e funciona como incentivo à busca por ativos financeiros. As empresas enfrentam maiores dificuldades para financiar suas operações e se expandir, o que pode reduzir a geração de empregos e a competitividade do país. Para os consumidores, o endividamento tende a crescer, já que as parcelas de financiamentos e empréstimos ficam mais caras. Além disso, o alto custo do crédito desincentiva o consumo das famílias, impactando diretamente setores como comércio e serviços. No longo prazo, esses efeitos podem retardar o crescimento econômico, aumentando a dificuldade de recuperação em períodos de crise. Vale destacar que o aumento da taxa de juros tem impacto no aumento da dívida pública, uma vez que boa parte dela está vinculada à taxa Selic (a taxa básica de juros do Brasil). De acordo com o Banco Central do Brasil, a cada 1% de aumento na taxa de juros há um impacto de aproximadamente R$55 bilhões ao ano.  
  1. Mercado de trabalho desregulamentado. O mercado de trabalho brasileiro apresenta desigualdade e heterogeneidade históricas, mas com a Reforma Trabalhista de 2017 houve um aprofundamento da liberalização do mercado de trabalho. Entre as medidas, estão: “o fim da obrigatoriedade do pagamento do imposto sindical; a prevalência do que é negociado entre a empresa e os trabalhadores sobre a legislação da CLT; a flexibilização das relações de trabalho, na medida em que amplia as formas de contratações (tempo parcial, trabalho intermitente e terceirização do trabalho), gerando menos custos ao empregador; e, no campo jurídico, a imposição de dificuldades de acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho (diminuição do acesso à justiça gratuita e responsabilização do trabalhador dos custos em caso de perda total ou parcial do processo, inclusive dos honorários do advogado do empregador). Sobre essa última medida, o impacto não tardou: em junho de 2018, o número de ações ajuizadas nos seis primeiros meses havia caído 40,8% em comparação ao mesmo período de 2017, segundo o Tribunal Superior do Trabalho”. (Trecho retirado do livro Para entender a economia brasileira – as questões em seu devido lugar; MARQUES et. al. 2024, p. 58).  Embora a taxa de desocupação esteja em um dos menores patamares (6,8% atualmente), isso não reflete uma melhoria no bem-estar social nem uma maior aprovação ao governo, pois o dinamismo do mercado de trabalho esconde a precarização das vagas. No setor privado, há uma polarização na oferta de empregos: de um lado, poucas vagas em atividades que exigem elevada qualificação e oferecem melhores salários; de outro, uma maior quantidade de vagas em funções que demandam menos habilidades e pagam menos. Enquanto que em atividades medianas (como operários qualificados da indústria, técnicos em geral e pessoal administrativo), com exceção dos técnicos de saúde, não há um incremento significativo. Além disso, a informalidade estrutural atinge 38,7%, e cerca de 21 milhões de pessoas estão em desocupação ou subocupação. Mais de um terço dos trabalhadores com ensino superior ocupam funções abaixo de sua qualificação, o que afeta seus ganhos e produtividade. O mercado de trabalho, portanto, enfrenta o agravamento da precarização. 
  2. Indústria de transformação. Atualmente, a indústria de transformação representa pouco mais de 10% do total do PIB nacional, taxa similar ao que se observava no início dos anos 1950, quando a indústria pesada não havia ainda sido instalada. “O ápice dessa participação ocorreu em 1985, quando essa atividade foi responsável por 21,8% do total produzido no país. (…) A partir da década de 1990, as diretrizes preconizadas pelo Consenso de Washington são impostas ao país via Fundo Monetário Internacional (FMI), exigindo ajustes das contas públicas e o afastamento do Estado de seus papéis de intervenção na economia. Além disso, a abrupta abertura comercial, as elevadas taxas de juros e a taxa de câmbio (real/dólar) muito valorizada (todas essas medidas que seguiam o pensamento neoliberal preconizado pelo FMI) afetaram diretamente a indústria de transformação que, de lá para cá, perdeu participação significativa na formação do PIB.” (Trecho retirado do livro Para entender a economia brasileira – as questões em seu devido lugar; MARQUES et. al. 2024, p. 85 e 86). Após o esvaziamento do debate sobre desenvolvimento, impulsionado pela predominância do pensamento neoliberal, a ideia de planejamento perdeu destaque, assim como o protagonismo do Estado e a importância da indústria. No entanto, recentemente, as políticas industriais voltaram a ser discutidas, com vários governos ao redor do mundo anunciando investimentos nesse setor. No Brasil, o Governo Federal lançou no ano passado a nova política de reindustrialização, chamada Nova Indústria Brasil (NIB). Esse contexto torna-se um momento crucial para retomar o diálogo sobre temas essenciais como a industrialização e o desenvolvimento do país. No caso brasileiro, é um avanço a retomada da política industrial, após 10 anos sem políticas para o setor, dentro de um horizonte de desenvolvimento que busca alcançar a fronteira tecnológica. Porém, o alinhamento da polícia industrial com as demais políticas macroeconômicas (fiscal e monetária) é indispensável e parece não estar ocorrendo, já que o NAF limita a ação do Estado.
  1. Estrutura tributária. A estrutura tributária brasileira é historicamente regressiva. A maior incidência dos impostos no Brasil é no consumo, o que penaliza as classes mais baixas, pois são elas que gastam quase a totalidade do que ganham, ou mais do que isso, endividando-se no consumo. Enquanto as classes mais altas gastam uma parcela muito pequena de sua renda no consumo, destinando o restante para investimentos financeiros, onde a taxação é baixa ou inexistente, como nos dividendos. A tributação de Imposto de Renda no Brasil apresenta uma progressividade, mas ainda beneficiando as altas rendas. Quem ganha até R$ 2.259,20 / mês é isento; entre R$ 2.259,20 e R$ 2.826,65 a taxação é de 7,5%; entre R$ 2.826,65 e R$ 3.751,05 a taxação é de 15%; de R$ 3.751,06 até R$ 4.664,68 a taxação é de 22,5%; e acima de R$ 4.664,68 a taxação é de 27,5%. Atualmente no Brasil estão ocorrendo mudanças na área tributária. Em 2024 foi aprovada a Reforma que simplifica a tributação. Além disso, está em discussão nas casas legislativas propostas para isentar o Imposto de Rendas para quem ganha até R$ 5.000,00 e taxar os dividendos, que são isentos no Brasil.
  1. Concentração de renda. “Em 2021, considerando a renda da população 10% mais rica, o Brasil figurou como o nono país mais desigual em termos de distribuição da renda total gerada em território nacional em uma lista de mais de 190 países, figurando à frente apenas da Colômbia e de mais sete países do continente africano. Nesse ano, os 10% dos brasileiros mais ricos concentravam 39,4% do total da renda (UNDP, 2022). O quadro piora quando se considera o 1% mais rico, pois o país se torna o quarto mais desigual, ficando melhor posicionado apenas em relação ao México na América Latina e Caribe. Esses mais ricos acumulavam 25,7% do total da renda nacional, enquanto os 40% mais pobres recebiam apenas 13,2% dela. No ranking da faixa de renda mais baixa, o Brasil se posicionou como 13º mais desigual (UNDP, 2022).” (Trecho retirado do livro Para entender a economia brasileira – as questões em seu devido lugar; MARQUES et. al. 2024, p. 66).
  1. Concentração de terras. A estrutura fundiária brasileira é historicamente concentrada. Sua formação remonta ao período colonial, que para atender as demandas de matérias-primas e alimentação do desenvolvimento do nascente capitalismo, grandes porções de terras foram criadas para a produção em larga escala voltada para o mercado externo. A concentração de terras no país ainda persiste, e ao longo de sua história serviu para o atendimento da necessidade do desenvolvimento capitalista de consumo de commodities e carne bovina. De acordo com os dados do Censo Agropecuário 2017, quase 50% do total de área rural com possibilidade de ser cultivada no país está concentrada em pouco mais de 1% do total de imóveis rurais. 
  1. Agronegócio e seus efeitos. Atualmente, o setor do agronegócio representa 22% do PIB brasileiro. As atividades do agronegócio envolvem os setores primário, secundário e terciário, que fazem parte da cadeia que utilizam produtos agropecuários e, no caso da indústria, fazem pequenas transformações em seus produtos. Apesar de seu dinamismo econômico e sua importância na balança comercial (ao trazer divisas internacionais para o país), os setores secundário e terciário envolvidos na produção do agronegócio não exigem tecnologias avançadas em seus processos. Ainda, “o avanço do agronegócio verificado nas últimas décadas tem implicado no aprofundamento da histórica concentração de terras no país. Não obstante, a expansão da fronteira agrícola desnuda a sanha do capital, em especial do capital transnacional, para a conversão das terras públicas e de posse dos camponeses e das comunidades tradicionais em propriedades privadas sob o controle direto ou indireto das gigantes corporações que atuam na agropecuária brasileira. as comunidades rurais além de terem suas áreas de exploração tradicional e de uso comum transformadas em fazendas para a exploração do agronegócio, ainda sentem os impactos deste modelo destrutivo de produção, levando a contaminações por agrotóxicos, desmatamentos e perda da biodiversidade natural, expulsão de trabalhadores agrícolas, entre outras. Vale destacar que os processos de invasão de terras públicas e dos processos de desmatamento ilegal tem funcionalidade no ciclo de incorporação de terras públicas como ativo financeiro, sejam elas devolutas, terras indígenas, assentamentos ou parques nacionais. Logo, este setor é orgânico ao capital financeiro, pois tal capital não poderá existir no caso dos países com fronteiras agrícolas abertas (coisa rara atualmente no mundo) sem o vínculo estreito com estes agentes. (Trecho retirado do artigo Os efeitos do desenvolvimento do agronegócio no Brasil:  os casos do MATOPIBA e do Centro-Oeste Brasileiro; ASSUNÇÃO e DEPIERI. 2021, p. 184 e 185).
  1. Desigualdades de raça e gênero. O racismo no Brasil é uma questão histórica que, apesar de avanços nas últimas décadas, continua a afetar profundamente a sociedade e o desenvolvimento do país. O racismo pode ser observado em muitas esferas da sociedade, como na sobrerrepresentação da população preta e parda entre a população carcerária; na violência policial sofrida pelos negros e também no mercado de trabalho, onde a população preta e parda é subvalorizada e obrigada a ocupar funções precárias, resultando em uma superexploração que mantém e aprofunda as desigualdades. Trabalhadores negros e pardos ganham em média 40% menos do que os trabalhadores brancos. O patriarcado, por sua vez, é uma relação de dominação de gênero que também sustenta a desigualdade oprimindo as mulheres e, em conjunto com o racismo, agrava a situação das mulheres negras, que ganham em média 47% a menos que os homens brancos. As articulações entre gênero, raça e classe estruturam as relações sociais e impõem obstáculos à vida de mulheres e pessoas negras no Brasil. Durante períodos de crise, essas desigualdades se intensificam, reforçando as estruturas racistas e patriarcais que permeiam a sociedade.  
  2. Transição Energética. No Brasil, o maior responsável pelas emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), que têm causado catástrofes climáticas cada vez mais frequentes, é o agronegócio. O setor responde por cerca de 65% das emissões de GEE no país, contra 23% causados pela geração de energia. Isso implica que, ao planejar nossa transição energética, não podemos simplesmente replicar os modelos adotados pela Europa, pois nossas causas são distintas. O Brasil tem o potencial de liderar essa transição e se reposicionar geopoliticamente. No entanto, isso exige uma mudança no modelo de produção agrícola, que atualmente é baseado na monocultura de commodities e na pecuária extensiva voltada à exportação. Além disso, é fundamental repensar a mobilidade urbana e levar em consideração a atual fronteira tecnológica que exige grandes volumes de energia para refrigeração por conta da digitalização da economia e o aumento da demanda por Data Centers. Por fim, a questão do petróleo continua central no debate energético do país. A qualidade e o preço competitivo do petróleo são fatores determinantes para a viabilidade das extrações, especialmente quando se considera o impacto ambiental e a necessidade de conciliar a exploração com a preservação. Porém, a grande questão permanece: quem vai pagar pela transição energética? Os custos são elevados e exigem um compromisso político e financeiro significativo, o que torna essencial repensar a política energética. Não se trata apenas de escolher fontes de energia, mas de garantir uma transição justa e equilibrada para fontes mais limpas.

Os dez pontos estruturais destacados ao longo deste texto, quando considerados em conjunto, formam um quadro interligado que potencializa as mazelas de um país subdesenvolvido. A rigidez das políticas fiscal e monetária dificultam qualquer tipo de projeto de reindustrializar o país, aprofundando a dependência nas atividades do setor primário e do agronegócio, incapaz de promover um desenvolvimento sustentável e inclusivo.

As dificuldades para impulsionar a inovação tecnológica e a transição energética refletem a fragilidade da estrutura produtiva nacional. Além disso, a concentração de renda, a vulnerabilidade de um mercado de trabalho desregulamentado e as desigualdades de raça e gênero agravam ainda mais as disparidades sociais e econômicas, perpetuando um ciclo de desigualdade e exclusão. Esses pontos, ao se interligarem, tornam ainda mais desafiadora a construção de um modelo de desenvolvimento que atenda aos interesses da classe trabalhadora brasileira, exigindo reformas profundas e uma reorientação das políticas públicas para romper esse ciclo vicioso.

Veja mais