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Ucrânia: a guerra infinita da Otan

Ainda que fragilizada, a Rússia garantiu que em seu entorno vital, Ucrânia, Bielorrúsia e Georgia não seriam incluídas na aliança militar ocidental

Anderson Barreto Moreira*

Quando em fevereiro de 2022 a Rússia anunciou sua decisão de iniciar uma Operação Militar Especial contra a Ucrânia, boa parte da chamada “comunidade internacional” – leia-se Estados Unidos, Europa e demais aliados – condenou o que chamaram de “agressão a um país soberano”. Pouco importava o golpe de estado de 2014, apoiado e financiado abertamente pela União Europeia (UE) e Estados Unidos, que levou ao poder um governo antirrusso, ultranacionalista e que desfila com suásticas em praça pública. O que importava é que aquele novo governo, nascido do golpe, jogasse o perigoso jogo da guerra contra Rússia, com a promessa de fazer parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e União Europeia.

Para a Rússia, a expansão da Otan para o território ucraniano não apenas descumpria acordos que remetiam ao fim da União Soviética, mas se tratava de uma questão vital para a existência do próprio Estado-nação russo. Depois de três anos de guerra e mais de um milhão de mortos (segundo estimativas não confirmadas) na maior guerra em solo europeu desde 1945, a Ucrânia está devastada, a Rússia se reorganizou economica e militarmente e a Otan dobra sua aposta numa possível confrontação com Moscou.

O mais novo dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Otan: a organização mais perigosa da terra, traz uma excelente contribuição para o conhecimento histórico dessa organização militar que funciona como um verdadeiro exército global a serviço das potências imperialistas. Se na sua origem estava a dissuasão contra o “inimigo soviético”, a Otan se transformou a partir dos anos 1990. Foi exatamente naquele momento em que, se valendo do caos originado pela dissolução da União Soviética, a organização militar ocidental iniciou seu avanço sobre as antigas repúblicas do bloco. Ainda que fragilizada, a Rússia garantiu que em seu entorno vital, Ucrânia, Bielorrúsia e Georgia não seriam incluídas na aliança militar ocidental.

Esse acordo foi paulatinamente desrespeitado – não sem constantes avisos das autoridades em Moscou – e provocando ora intervenções militares russas, como no caso da Geórgia, até golpes de Estado vendidos como “revoluções pela democracia”, como no caso bielorrusso e ucraniano. Não se trata aqui da defesa ou avaliação das qualidades destes regimes – cada povo tem o direito de decidir sobre seu destino sem intervenção externa –; trata-se de compreendermos que constantemente Otan e Estados Unidos se valem de descontentamentos internos, subornos, lobbys, grupos mercenários, neonazistas e o que mais estiver a disposição para colocar no poder governos que atendam seus interesses. Portanto, é nesse contexto que devemos entender o conflito iniciado em fevereiro de 2022.

A evolução do conflito reflete também a evolução dos atores envolvidos. Nos primeiros meses da guerra, entre fevereiro e abril de 2022, a iniciativa militar russa aparentemente havia desabilitado qualquer possibilidade de defesa própria por parte da Ucrânia. Isso se refletiu nas negociações que ocorreram na capital da Turquia (Istambul): a Ucrânia se tornaria um país neutro – sem possibilidade de se tornar membro da Otan -; desarmaria e desmobilizaria das fileiras das suas forças armadas os batalhões neonazistas e antirrussos que atuavam no país; aceitaria a autonomia da região do Donbass que, desde 2014, era alvo de bombardeios constantes pelo regime de Kiev e, por fim, reconheceria a Crimeia como território russo.

Ambas as partes estavam prontas para assinar o acordo quando, o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson, interveio e retirou a Ucrânia da mesa de negociação. O ex-ministro não falava por si mesmo: naquele momento o governo do democrata Joe Biden e a Otan deixavam claro que nunca se tratou dos interesses ucranianos, e de que lutariam “até o último ucraniano”. Com as armas da Otan e estadunidenses fluindo infinitamente para a guerra por procuração contra a Rússia e a delirante ideia de “derrubar o regime de Putin” e desmembrar o gigante eurasiático, a Otan levou a cabo seu projeto, mesmo que ao custo de milhões de vidas e um país devastado.

Os anos 2022 e 2023 foram marcados pelo discurso delirante da “virada ucraniana” sobre a Rússia, ainda que em 2022 quatro regiões do leste ucraniano – o mais desenvolvido industrialmente e com importantes reservas de minérios – tenham feito plebiscitos que decidiram por se separar da Ucrânia e se unir a Federação Russa. É fato que a Ucrânia obteve algumas vitórias táticas, mas nunca conquistou o controle estratégico que sempre esteve nas mãos da Rússia. Não foram poucas as vezes que testaram os limites do governo russo, colocando a humanidade em risco de uma confrontação nuclear.

Ao mesmo tempo, a Rússia precisou reorganizar sua economia diante das inúmeras sanções que recebeu, bem como reorientar a sua produção de armamentos. E foi extremamente bem-sucedida em ambos. A economia russa se fortaleceu, desligando-se cada vez mais dos circuitos financeiros dominados pelo dólar; não apenas ampliou sua capacidade de produção militar como passou a ter a dianteira tecnológica na produção de drones e mísseis hipersônicos, por exemplo, e modernizou sua tríade nuclear. Aprendeu com seus erros no campo de batalha e reformulou todo seu sistema de incorporação e treinamento, bem como métodos de combate. Tudo isso em tempo recorde e associado com crescimento econômico.

O resultado do que descrevemos acima foi uma virada impressionante a partir de 2024. De lá para cá, a Rússia se tornou implacável no campo de batalha, conquistando de modo meticuloso todas as cidades estratégicas na região do Donbass. Enquanto isso, Otan e Ucrânia passaram a atuar cada vez mais em atos de sabotagem e terrorismo, com bombas e assassinatos de civis e militares e ataques de drones e mísseis em áreas civis. Além disso, tentaram uma invasão da região de Kursk na Rússia, que resultou em mais de 80 mil soldados ucranianos mortos, segundo estimativas russas, bem como pesadas perdas em equipamentos militares. Se tornou lugar-comum a exibição de equipamentos da Otan e dos Estados Unidos na Praça Vermelha em Moscou.

As ações de caráter terroristas promovidas pela Ucrânia e planejadas pela Otan tem elevado a tensão com a Rússia. Se antes haviam preocupações em ocultar as fontes das ações ucranianas, isso hoje já não existe. Diariamente líderes europeus autorizam o uso de seus armamentos em ações de ataques diretos contra o território russo, falam em envio de tropas para o território ucraniano e não escondem que estão em guerra, ou se preparando para um confronto direto com a Rússia. Moscou já entendeu que há tempos que sua luta não é contra a Ucrânia, mas contra os 32 países que fazem parte da aliança militar ocidental. A vitória russa na Ucrânia não é uma dúvida, é um fato. A Rússia continuará lutando no território ucraniano enquanto for conveniente para seus interesses militares, políticos e econômicos. É claro que uma intervenção direta da Otan traria um novo cenário – totalmente imprevisível, pois certamente estaríamos lidando com uma guerra mundial. Entretanto, o errático governo Trump não tem sinalizado apoio nessa direção, o que não significa que haja alguma segurança de longo prazo.

Cada guerra carrega em si as contradições de seu tempo e sinalizam transições de maiores ou menores proporções. Em 2022 a Rússia foi vista por boa parte do mundo como um país governado por um “líder autoritário” que desejava reviver um antigo império. Três anos depois, podemos afirmar que a Rússia – ainda que com suas contradições – tem se mostrado extremamente equilibrada diante do descontrole do decadente império estadunidense e seus aliados. Não sabemos quando nem como o conflito na Ucrânia será encerrado, mas uma certeza nós temos: como bem demonstra o dossiê do Instituto Tricontinental, a Otan precisa ser extinta para que a construção de uma Nova Ordem Mundial igualitária e multipolar seja possível.

*Anderson Barreto Moreira é professor de história e pesquisador convidado Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

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