A repercussão do filme Apocalipse nos Trópicos, disponível na Netflix, requentou um debate tão antigo quanto importante, que diz respeito tanto à importância de se compreender melhor as motivações e desejos das pessoas evangélicas que vivem no Brasil quanto aos perigos que envolvem o uso político, muitas vezes mal-intencionado e enviesado, da fé que as move.
Não vou me alongar muito sobre o bom filme dirigido por Petra Costa e produzido por Alessandra Orofino. Não me somo às críticas de quem percebeu uma supervalorização do pastor Silas Malafaia nem às de quem desejava mais sobre a influência católica ou mesmo de outras lideranças protestantes. Entendo o dono da Assembleia de Deus Vitória em Cristo como um elemento no fio condutor, um líder político neopentecostal como tantos outros, escolhido por tantos motivos para representar este público.
E “querer mais” é um direito natural, normalmente incompatível com produtos audiovisuais que têm tempo limitado. O tema não se esgota e cabe em outros documentários, séries, livros, podcasts e muito mais. Eu mesmo queria mais luz em Edir Macedo, um dos pioneiros na ocupação religiosa de espaço político e autor de um livro chamado Plano de Poder no longínquo ano da graça de 2008. Problema meu.
Alessandra e Petra fizeram um filme correto, que traz pouca novidade, possivelmente feito para o público estrangeiro. Uma obra que sistematiza de forma objetiva alguns acontecimentos importantes dos últimos anos. Negrita o diálogo com o elemento religioso como um componente imprescindível para se ocupar o poder neste país e destaca a forma com que alguns expoentes deste segmento instrumentalizam o transcendental para influir de forma muito material e atender a interesses muitíssimo particulares.
Com um acesso incrível a diversos espaços de diversos poderes, as cineastas colocam a gente na mesa do café da manhã desta turma e, em primeira pessoa, assumem verdades que muitos veículos de jornalismo não tiveram coragem de assinar. Amém?
Pois bem. Corta para um final de semana em que a governadora de Pernambuco e o prefeito do Recife, em momentos distintos, participam de um evento com milhares de pessoas promovido pela Assembleia de Deus, uma das maiores denominações cristãs do país. Raquel Lyra e João Campos estão em plena preparação para a campanha eleitoral em que disputarão – como eu! – a vaga que ela ocupa.
Eles não estavam lá participando de um debate e nem para expor suas próprias ideias. Estavam marcando presença, aparecendo, enaltecendo a igreja e “beijando a mão” do pastor Ailton José Alves, conhecido articulador político, próximo de lideranças fundamentalistas e conservadoras que hoje estão em diversos partidos, como PSB, PP e PL.
Embora tenha votado em Bolsonaro nas últimas eleições, o líder da “Bléia”, apelido carinhoso com o qual a juventude chama sua igreja, ainda não definiu com quem se abraçará em 2026 e vem sendo disputado por tudo quanto é segmento da política tradicional.
A reflexão que proponho, porém, não passa pelo pueril debate sobre “se” devemos dialogar com a comunidade cristã. Afinal, se juntas as diversas igrejas evangélicas e a católica somam mais de 80% do povo brasileiro, esta não deveria nem ser uma questão. Digo mais: ainda que seja proibido fazer campanha explícita em templos de qualquer natureza, nenhum político que deseja ganhar as eleições negaria um “convite para conversar” com milhares de jovens de uma vez só, seja lá o lugar em que estejam reunidas estas pessoas. Ou você não iria?
O que precisamos pensar é justamente em “como” e “o quê” dialogar com esta turma, que é muito mais diversa do que pode parecer. Mais do que gente que segue à risca os comandos de sua liderança (o que muitas vezes é verdade), tratam-se de pessoas reais, que vivem no mundo real e que têm problemas reais.
O desafio (e a oportunidade) que recai sobre os segmentos mais progressistas, portanto, é ir além do lugar comum que enganosamente coloca toda uma comunidade como “adversária”. Temos cada vez mais que compreendê-la como parte significativa do nosso próprio povo e que, como todo mundo, também quer segurança, trabalho, saúde, educação, moradia, descanso digno, comida, diversão e arte.
Com fé em Deus e no Paraíso, são pessoas como eu (agnóstico, nascido e criado na igreja católica, coroinha, batizado e crismado) e você (que, pelas estatísticas, é capaz de ser cristão, mas pode também não ser). Gente que se esforça para ser feliz na Terra. E, portanto, pessoas que querem conhecer propostas para garantir-lhes estes direitos nos lugares onde vivem. Que encontram na vida comunitária e muitas vezes solidária, proporcionada pelas igrejas, respostas que não encontraram em outro local.
É bem verdade que lideranças mal-intencionadas vão continuar insistindo nos velhos jargões (“pela família”, “contra as drogas”, “contra o aborto”). Mas não vamos esquecer que se trata de (fortes) sujeitos políticos usando estratégias batidas para anular os adversários. Tenhamos também as nossas estratégias.
Que tal conhecer a Bíblia, para dizer que Jesus foi o primeiro defensor da separação entre a Igreja e o Estado, dizendo com todas as letras que o projeto religioso não deve se envolver na disputa de poder político (Mateus 22:15–22, também em Marcos 12:13–17 e Lucas 20:20–26)?
Que tal lembrar que, em todas as Escrituras Sagradas, a única vez em que o Nazareno perdeu as estribeiras e partiu para a porrada foi contra quem usava a religião para enganar o povo e ganhar dinheiro (João 2:15)? Não foi contra a mulher adúltera, a quem perdoou (João 8:1–11), ou contra o cobrador de impostos, símbolo da opressão romana, a quem acolheu (Lucas 19:1–10).
Eu mesmo adoro as passagens em que Cristo diz que quem tem duas túnicas tem que dar uma a quem não tem (Lucas 3:11) e a que Ele diz que é mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus (Mateus 19:24; também em Marcos 10:25 e Lucas 18:25). Será que Malafaia leu essa parte?
Ao invés de esconder algumas de nossas pautas mais caras, por que não ter a coragem de dialogar, trazendo o discurso para a prática? Tudo bem, você é contra o aborto, mas e se sua filha for estuprada? Se você é a favor da família, que tal demonstrar carinho e apoio por seu filho que se assumiu gay? Ainda que seja contra o uso de drogas, o que o Estado tem garantido para pessoas que você ama e que talvez faça uso problemático de alguma substância? A prisão ou o cemitério. O cuidado não seria a medida mais ‘cristã’ a se tomar?
Não se engane: se avançamos tanto nos últimos anos com a regulação do uso da maconha para fins medicinais, é — entre outras coisas— porque filha de missionário também precisa de remédio.
Não podemos esquecer o legado de expoentes cristãos na luta (laica) por direitos humanos. Importante referenciar (e reverenciar) gente como os batistas Martin Luther King e María Cristina Gómez, o anglicano Desmond Tutu, os católicos Dom Helder Câmara e o último Papa Francisco, entre tantas figuras históricas.
E, rezando pela cartilha da educação popular, fortalecer novos sujeitos que vêm topando dialogar com seus irmãos e irmãs de igreja. Quanto mais Marinas e Beneditas da Silva, Henriques Vieiras e Aavas Santiagos literalmente disputando estes espaços, melhor estaremos — nisso eu acredito de verdade. Aqui em Pernambuco, acompanho de perto a caminhada de figuras como Ailce Moreira e torço para que cheguem bem alto, conquistando espaços e mudando para melhor a nossa experiência coletiva neste planeta.
Mais do que tudo, não podemos perder a fé.
*Este texto contou com a revisão do pastor Josias Vieira Kaeté.