Nem sempre o trabalho liberta. Às vezes, ele aprisiona, machuca e adoece. Em um país onde a liberdade ainda é privilégio e não direito pleno, o 1º de Maio não é apenas celebração das conquistas já alcançadas: é denúncia e convocação à luta.
Em Minas Gerais — estado que lidera o ranking nacional de trabalho análogo à escravidão, com 1.398 trabalhadores resgatados apenas em 2023, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego — três casos recentes escancararam a face cruel da precarização.
Em Belo Horizonte, uma trabalhadora doméstica foi resgatada após mais de 30 anos vivendo como prisioneira, sem salário. No Triângulo Mineiro, um trabalhador mantido por quase nove anos em condições análogas à escravidão foi resgatado com as iniciais dos patrões tatuadas em seu corpo. Em outra denúncia, vinte e dois motoristas foram encontrados em situação degradante em uma transportadora ligada ao grupo econômico do governador Romeu Zema, submetidos a jornadas de até 19 horas diárias, sem descanso e expostos à exaustão.
É importante lembrar que, em 2017, enquanto ainda era pré-candidato ao governo de Minas, Zema declarou que, nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, bastaria oferecer um salário mínimo para formar filas de trabalhadores, e que empregadas domésticas aceitariam receber R$ 300 — uma visão que escancara a naturalização da exploração e da desigualdade.
A ausência de políticas públicas para garantir trabalho digno nos territórios mais vulnerabilizados também força milhares de pessoas a deixar suas comunidades em busca de sobrevivência. Essa migração forçada é parte do cotidiano de diversos trabalhadores do Vale do Jequitinhonha, que, na busca por oportunidades, frequentemente caem em esquemas de aliciamento e acabam submetidos a condições degradantes — especialmente nos setores da construção civil, do agronegócio e do trabalho doméstico.
Essas situações, muitas vezes invisibilizadas, refletem uma realidade grave: a precarização do trabalho, o adoecimento físico e mental, e a violação sistemática dos direitos humanos.
A saúde como direito humano
A saúde do trabalhador e da trabalhadora é um direito humano que vai além da ausência de doenças: depende de condições dignas de trabalho, respeito aos limites do corpo e da mente, valorização da vida acima do lucro.
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Trabalhar jornadas extenuantes, sem descanso, sob pressão constante, é caminho certo para o adoecimento. Não por acaso, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), quase 3 milhões de pessoas morrem por ano no mundo por acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. No Brasil, foram mais de 600 mil acidentes registrados apenas em 2023.
Naturalizar condições de trabalho que exaurem e adoecem é tratar trabalhadores não como sujeitos de direitos, mas como engrenagens descartáveis de um sistema de exploração.
O desmonte das proteções e o ataque ao descanso
Essa lógica de exploração cresce à sombra do desmonte das proteções sociais: menos fiscalização, menos investimento em saúde pública, mais precarização.
A própria existência da escala 6×1 — seis dias de trabalho para apenas um de descanso — expõe o quanto o direito ao repouso foi historicamente tratado como secundário. Agora, diante dos debates sobre o fim dessa escala exaustiva, setores conservadores tentam normalizar jornadas ainda mais brutais, ignorando o impacto da falta de descanso sobre a saúde dos trabalhadores.
Defender mais folgas, jornadas humanas e uma vida que não seja consumida pelo cansaço é essencial para qualquer sociedade que respeite a dignidade humana. Naturalizar jornadas extenuantes é, na prática, uma sentença de adoecimento para milhões de brasileiros.
Trabalho digno, saúde garantida
Não podemos aceitar isso como destino. A defesa da saúde do trabalhador e da trabalhadora exige a reconstrução de políticas públicas, a valorização da fiscalização, o fortalecimento dos sindicatos e a ampliação da atenção à saúde no SUS.
A reconstrução da dignidade exige enfrentar o desmonte promovido nos últimos anos. A reforma trabalhista de 2017 e a da Previdência de 2019 precarizaram direitos e dificultaram o acesso à aposentadoria, enquanto o desmantelamento do Ministério do Trabalho enfraqueceu a fiscalização e a proteção social.
Hoje, sinais de retomada se manifestam na recriação do Ministério do Trabalho e Emprego, no fortalecimento da fiscalização e na ampliação de programas de proteção ao trabalhador. Mas reconstruir um país que valorize quem trabalha exige mais: é preciso revogar as reformas que aprofundaram a exploração e restabelecer, com avanços, os direitos que foram retirados.
O trabalho deve ser fonte de vida, não de adoecimento. Combater toda forma de escravidão moderna — nos campos, nas estradas ou dentro das casas — é urgente.
1º de Maio: lembrar para lutar
Neste 1º de Maio, mais do que lembrar conquistas passadas, é preciso olhar para o presente e reafirmar o futuro que queremos construir: um futuro onde trabalhar seja exercer um direito, e não carregar uma sentença de sofrimento – seja enfrentando jornadas desumanas, seja resistindo à precarização de direitos históricos como o descanso semanal.
Porque sem trabalho digno, não há democracia possível. Sem saúde para quem trabalha, não há país que se sustente.
Dr. Jean Freire é médico e deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.