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Neste espaço, o jornalista Rogério Viduedo vai discutir o uso da bicicleta sob a perspectiva do trabalhador, da trabalhadora, pois é uma ferramenta de transformação social e de combate tanto das mu...ver mais

A campanha da Uber para corroer uso de ônibus e bicicletas

E se você pega um busão e acaba com a cara cheia de vidro após uma pedra explodir a janela? Melhor usar o aplicativo, né?

Tudo dá certo para as operadoras de transporte por aplicativo. Elas têm sido muito eficientes em criar mercado para o produto que ofertam e, ultimamente, contam com o poder público e até com as coincidências da vida para crescer. Contam também com muito dinheiro e modernas técnicas de convencimento para botar na cabeça da população que pegar um carro ou uma moto que elas oferecem é a solução mais eficaz para se deslocar com segurança nas grandes cidades. O problema é que, assim, vão corroendo a mobilidade ativa e de massa até que ninguém mais queira usá-las.

A maior arma que a empresa usa para gerar demanda é o medo. Está rolando uma campanha da Uber nas mídias sociais para que usuários de metrô e trens em São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife, Belém e Vitória passem a considerar chamar um desses carros ou motos de aluguel como forma de chegar ou sair de uma estação. Quem fizer isso vai receber descontão de 30%. É a tática do traficante. Oferece a droga baratinha e quando o vício pegar botam os preços para cima e a pessoa, já condicionada àquele prazer, não consegue mais se livrar.

Há muitos argumentos para embasar a sensação de medo. Esperar um ônibus sozinha, tarde da noite ou colocar-se em risco ao fazer uma caminhada por lugares ermos são argumentos convivencentes usados na peça publicitária. São medos comuns de quem vive nas grandes cidades. 

Tem ainda a propaganda grátis feita pelo noticiário.  Aqui em São Paulo, por exemplo, durante três meses os programas policiais destacaram a onda de ataques a ônibus. Sem nenhuma explicação, homens saíram às ruas para apedrejar coletivos. Foram 800 ataques em 27 cidades da Região Metropolitana. O assunto sumiu, ninguém sabe a mando de quem ocorreram os vandalismos, mas a sensação ficou. E se você pega um busão e acaba com a cara cheia de vidro após uma pedra explodir a janela? Melhor usar o aplicativo, né?

E as longas esperas no ponto mesmo durante o dia? São odiosas. Num domingo, por exemplo, em que se alardeia a Tarifa Zero em São Paulo, você pode ficar mais de 40 minutos esperando um coletivo passar, pois a prefeitura retirou mais de dois mil deles das ruas por falta de demanda. Alegam que é efeito da pandemia, que fez a frota encolher. Só que ela nunca mais foi resposta, pois tem menos gente usando o transporte. De 2019 a 2023, a queda no número de passageiros de ônibus urbanos foi de 25,8% no país, relatou a Associação nacional de empresas de transporte urbano (NTU). 

Outra alternativa para a última perna depois do Metrô poderiam ser as bicicletas.  Aqui em São Paulo, entre os anos de 2013 a 2016 quando o prefeito Fernando Haddad (PT) revolucionou a política cicloviária, como diria Ronaldinho Gaúcho, “deixaram a gente sonhar”. Eu mesmo achei que agora em 2025 eu nem precisaria possuir uma bicicleta. Bastaria andar alguns metros para pegar uma dessas de aluguel e pedalar até a estação mais próxima e vice-versa.

Ledo engano. Depois de mais de oito anos, a nova versão do programa Bike Sampa inaugurada pelo então prefeito João Dória (PSDB) em 2018, foi concedido à Tembici e é patrocinado pelo Itaú e pela própria Uber, além de não expandir, encolheu. Resume-se a ficar em parte do centro expandido e não tem nenhuma intenção de atender toda a cidade, chegando às periferias, que é o que está no contrato. Na inauguração desse novo sistema, chegaram a garantir que haveria estações do Bike Sampa em terminais de ônibus do Tatuapé, Cachoeirinha, Jabaquara, Itaquera e Capelinha, bem distantes do Centro. Chegou a ter uma em Cidade Tiradentes, como parte do marketing, mas ficou restrito àquele terminal. 

Pelo lado da empatia, eu não vejo como julgar uma pessoa por cair na tentação do carro de aplicativo cuja corrida de até três quilômetros é pouco mais cara que uma passagem de ônibus. A senhora moradora de Carapicuíba que trabalhou o dia inteiro limpando banheiros numa casa de classe alta no Parque dos Príncipes em Osasco merece ter um transporte digno.  

E se um aplicativo oferece a ela uma viagem com preço competitivo que evite ela andar 10 minutos para chegar no ponto e ainda ficar mais 30 minutos dentro do busão para chegar à estação de trem, ela tem mais é que usá-lo, pois o carro de aplicativo chega na porta e o percurso não demora mais de 15. O problema é que no futuro, tal dependência vai jogar contra nós.

À luz das necessidades globais de reduzir emissões de gás estufa e dar mais dignidade a moradores dos centros urbanos, a culpa por estarmos vivendo essa situação não pode ser de passageiros e nem dos trabalhadores precarizados que conduzem os veículos. É da falta de políticas públicas que realmente deixem de incentivar o uso de transporte individual.  São os governantes que precisam oferecer alternativas ousadas para uso de transporte público e da mobilidade ativa.  

Vai ficar difícil convencer as pessoas para deixar o uso de automóveis e motos de aplicativo de lado se todos os níveis de governo trabalham a favor deles. No nível federal, por exemplo, isenção de IPI para carros, financiamento de motos para entregadores, CNH de graça, abolição das autoescolas; no nível estadual, precarização dos trens metropolitanos, proibição de ciclistas em rodovias; no municipal, diminuição das frotas de ônibus e desestímulo ao uso de bicicletas, seja pela vagarosidade em criar infraestrutura, seja pela falta de fiscalização de motoqueiros e carros que invadem ciclofaixas, uma situação que tende a se agravar. 

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