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Júlia Louzada, é psicologa, psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da USP. Com disse...ver mais

O Brasil é Nosso

A autoestima do povo brasileiro é paradoxal: explode no futebol, na música, na festa. Mas se retrai na política, no projeto de país

‘Sobre pertencimento, soberania e a autoestima de um povo’

“O Brasil é um país soberano, com instituições independentes, que não aceita ser tutelado por ninguém.” Essa frase, publicada e assinada pelo presidente Lula (PT) em suas redes sociais, nos chama a refletir, compartilhar e assinar junto, agir coletivamente sobre o que realmente significa a palavra soberania.

Mas, para que essa soberania seja verdadeira, precisamos primeiro entender de onde viemos — e porque, até hoje, parte do nosso povo ainda não consegue pertencer plenamente a este chão. E talvez tudo comece mesmo pela terra. Ou pelo corpo. Ou pelo corpo que pertence à terra. Mas aqui, não pertencemos. Ou melhor, não nos deixam pertencer. A história do Brasil é também a história de uma cisão: entre o povo e sua terra, entre o desejo e a decisão, entre o que somos e o que nos ensinaram a não ser.

Na América Latina, as primeiras independências foram impulsionadas por José Martí, Simón Bolívar, San Martín, homens que, mesmo inseridos em seus contextos e limites históricos, ousaram sonhar com um projeto nacional para seus povos. Inspirados por ideais iluministas, defendiam a liberdade e a autodeterminação, ainda que nem sempre conseguissem romper com todas as estruturas de exclusão.

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Apesar das contradições, havia nesses projetos um desejo real de construção de nações soberanas, articuladas com o sentimento popular. Bolívar e Martí falavam de lutas por libertação nacional e unidade continental,  identidade latinoamerica frente ao imperialismo, demonstrando que a luta pela soberania nacional e pela unidade internacionalista não são contraditórias em territórios de capitalismo dependente. Havia um imaginário político potente  em disputa.

Já no Brasil, nossa separação de Portugal se deu sem ruptura. Foi um gesto encenado, proclamado por um príncipe europeu, com a escravidão intacta e as elites locais preservadas. Aqui, não houve projeto de nação, houve continuidade. Continuamos colônia, apenas sob nova administração. E, em 1822, nos tornamos um Estado nacional formalmente, mas dependente em suas relações estabelecidas com o centro.

Enquanto nossos vizinhos ao sul e ao norte arriscavam, ainda que com contradições, a invenção de um povo, o Brasil optou por manter o pacto colonial disfarçado de independência. O mesmo se deu com a abolição da escravidão: celebrada por uma assinatura oficial quando, há muito, o movimento negro já se organizava. Nossa história é mediada por silêncios. Por conquistas negadas, quando não sequestradas.

Talvez por isso falte, entre nós, um sentimento coletivo de pertencimento. A terra ainda não é de quem a vive, mas de quem a possui legalmente. A questão agrária é mais do que uma pauta: é a ferida aberta que atravessa séculos. E sem terra, não há pátria. Há submissão. 

Mariátegui, nos Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, já nos alertava que os problemas da América Latina não se resolveriam com cópias dos modelos europeus. Era preciso enraizar o pensamento, pensar com os pés sujos de terra e as mãos marcadas de trabalho. O mesmo disseram os estudantes argentinos em 1918, com a Reforma de Córdoba: a universidade deve ser autônoma, sim, mas sobretudo popular. Livre cátedra, vínculo com a realidade, uma educação para o povo.

Mas, no Brasil, as universidades, durante muito tempo, foram espaços de reprodução do saber europeu e, em parte, ainda são. A abertura para o povo se deu a duras penas, pelas lutas dos movimentos negros, indígenas, periféricos. E, mesmo assim, segue sendo contestada por discursos que se dizem “neutros”, mas carregam a dimensão da exclusão. Nosso projeto de nação sempre foi tutelado: pelas metrópoles, pelas elites locais, pelos militares, pelo medo.

E, nesse medo, nos ensinaram a desconfiar de nós mesmos. A duvidar das nossas ideias, da nossa música, da nossa ciência. E a olhar para fora como quem pede permissão para existir. A autoestima do povo brasileiro é paradoxal: explode no futebol, na música, na festa. Mas se retrai na política, no projeto de país.

Soberania

Não foi sempre assim. Houve tempos em que a palavra “soberania” pulsava nas ruas. Foi de dentro das universidades, inclusive, que emergiram vozes em defesa de um Brasil para os brasileiros. A campanha O Petróleo é Nosso, nascida nos anos 1940, teve no movimento estudantil um de seus principais motores. 

Estudantes, operários, intelectuais e militares nacionalistas se uniram para afirmar que os recursos do país pertencem ao povo que nele vive e trabalha. A criação da Petrobras não foi apenas um feito técnico ou administrativo, mas a vitória simbólica de uma aposta coletiva no país. Uma vitória enraizada na disputa da Petrobras, mas também por dignidade política.

Essa campanha fez parte de um ciclo mais amplo de lutas por soberania: a reforma agrária exigida pelos camponeses, vide as Ligas Camponesas, a defesa das águas e dos minérios feita por povos indígenas e ribeirinhos, a resistência dos quilombos e favelas às remoções e apagamentos. São vozes que, mesmo marginalizadas, seguiram dizendo: o Brasil é nosso. Hoje, quando essa memória é desfigurada ou esquecida, corremos o risco de entregar o país àqueles que nunca o amaram e apenas o exploraram.

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Nossa redemocratização veio sem justiça, sem punição aos crimes da ditadura, sem verdade plena. Houve luta, e foi não pouca: resistência armada, organização popular nas periferias, sindicatos, igrejas progressistas. 

Houve cultura enfrentando a censura, artistas que arriscaram tudo para cantar o que não se podia dizer. Houve o movimento contra a carestia, mães nas filas e nas ruas, movimentos estudantis, greves operárias. 

A anistia foi ampla, mas desigual: perdoou os torturadores e deixou as feridas das vítimas abertas. E o esquecimento é também uma forma de dominação. Ele não apaga o passado, apenas silencia. E onde não há memória, qualquer narrativa pode se instalar. Sem memória, não há identidade. E sem identidade, qualquer discurso pode tomar o lugar do nosso.

Foi assim que a bandeira que já tremulou em protestos por comida, por moradia, por dignidade, passou a ser usada como símbolo de intolerância. O verde e amarelo foi sequestrado por um nacionalismo que bate continência para os Estados Unidos. Um patriotismo que não conhece o povo que diz defender.

O Brasil é muito maior que isso

E aqui, é preciso falar das mulheres. Porque há uma dimensão do pertencimento que nos atravessa de forma ainda mais íntima. A poeta nicaraguense Gioconda Belli escreveu: “Duas coisas que não decidi decidiram por mim: o sexo com que vim ao mundo e o país.” 

Ser mulher na América Latina é saber, desde cedo, que o corpo é um território em disputa. Mas o feminismo latino-americano sempre soube que a luta é coletiva. Que não há emancipação possível sem transformação da estrutura. 

As mulheres das Mães da Praça de Maio na Argentina; as camponesas da Via Campesina; as mulheres do movimento negro; mulheres em movimento que defendem os rios, todas carregam nas costas uma pátria possível. São elas que sustentam a soberania alimentar, que defendem o território, que constroem o que é comum. E são, muitas vezes, apagadas do discurso político nacional.

A soberania é uma palavra grande, as mulheres sabem. Mas talvez ela comece em gestos pequenos: uma rede de vizinhas, uma horta comunitária, uma cozinha popular, uma escola com pensamento crítico, uma roda de escuta, um samba na rua. E se não defendermos isso, alguém vai tomar. Porque o projeto de país não é neutro. Ou é coletivo, ou será colonizado.

Neste momento, o governo faz uma aposta e chama o povo para junto. Enfrenta as sanções tarifárias impostas por Trump e radicaliza o discurso nas redes sociais. E, principalmente, ousa levantar a cabeça diante do cenário internacional: assumimos a presidência do Mercosul, voltamos a ser voz ativa na América Latina, somos peça importante no tabuleiro do BRICS. É um gesto. Um começo. Um acirramento.

Nossa soberania não se resolverá apenas neste governo, assim como nossa autoestima, ferida por séculos, não se cura em poucos anos. Mas o embate está lançado. E ele exige que elevemos o nosso nível de consciência. Que saibamos ler o momento histórico e assumir a parte que nos cabe. Que transformemos afeto em projeto, memória em horizonte, e principalmente em um desejo de país. Uma aposta afetiva no que somos e podemos ser. 

A bandeira também é nossa

A coragem de dizer que a bandeira também é nossa. Que não deixaremos que o sentimento nacional e a autoestima de ser brasileiro seja monopólio da direita, nem que o amor ao Brasil seja confundido com autoritarismo.

Seria tempo de pintar as ruas, como nas Copas do Mundo? Pintar as calçadas, estender bandeiras nas janelas, fazer mutirão, votar no plebiscito. Conciliar nossas mãos que torcem pela seleção com as que podem, também, defender a soberania. Política, energética, alimentar, cultural. 

O verde e amarelo foi sequestrado por um nacionalismo que bate continência para os Estados Unidos

E essa defesa não se faz apenas nas urnas ou nas ruas, ela se dá também nas redes, como vimos hoje. Na disputa por narrativas, nos comentários, nos memes, nos vídeos que viralizam ou são censurados. A luta simbólica é real. E, nesse terreno instável, o afeto pode ser estratégia. Afinal, uma soberania se escreve com memória, com afeto e com política. Com sonhos que nasceram lá atrás, com Bolívar e Mariátegui, sim, mas também com os nossos e nossas.

É tempo de lembrar os nomes que a história oficial tentou apagar: Maria Felipa, mulher negra que  lutou pela independência na Bahia; Tiradentes, mártir da Inconfidência que ousou sonhar com uma república antes que ela existisse; Luiz Gama, que usou as palavras como armas para libertar mais de 500 pessoas da escravidão; e tantos outros e outras, que sustentaram este país com o corpo, a palavra e o risco.

Eles são parte do nosso espelho coletivo. E sem espelho, não há autoestima. Durante séculos, o que nos deram foram espelhos coloniais, objetos de troca, instrumentos de ilusão. Os portugueses nos ofereceram reflexos distorcidos que não nos cabia. 

Mas esses espelhos, aos poucos, fomos quebrando. E no lugar deles construímos os nossos. Com suor, com trabalho, com política nacional industrial, com projeto. Hoje, temos uma indústria nacional que faz espelhos, reais e simbólicos. Ainda não refletimos tudo o que somos, mas começamos a nos ver e a reaprender a amar o Brasil. Não o Brasil idealizado pelas elites, mas o Brasil real, contraditório e insurgente. O Brasil que canta, que planta, que insiste. O Brasil que pode, sim, se reinventar a partir de nós, com nossas cores, nossas dores, nossos sabores e nossa alegria.

Sim, o Brasil é difícil. Mas também é lindo. E é nosso. Pertence a quem o cultiva, a quem o canta, a quem o luta. Não aos que o vendem e golpeiam.

 ¡Yanquis al carajo!, como disse Chávez, não por agitação, mas por dignidade. Porque defender a soberania é também isso: reaprender a dizer não. Reaprender a dizer sim. Reaprender a dizer “nós”.

Júlia Louzada é psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente representa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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