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Júlia Louzada, é psicologa, psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da USP. Com disse...ver mais

Coração de estudantes

Ana, Leandro e Welfeson apostaram. Foram. Não chegaram. Mas ainda assim chegaram: chegaram ao nosso peito.

Em memória de  Ana, Leandro e Welfeson.

“Quero falar de uma coisa
adivinha onde ela anda…”

Na madrugada do dia 11 de julho, a notícia atravessou o país como uma ferida: cinco pessoas morreram em um acidente na BR-153. Três delas eram estudantes da Universidade Federal do Pará (UFPA), a caminho do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Goiânia: Ana Letícia Araújo Cordeiro, estudante de Pedagogia; Leandro Souza Dias, do curso de Farmácia; e Welfesom Campos Alves, de Produção Multimídia. Jovens sonhadores, engajados, com o futuro inteiro pela frente. Também morreram no acidente os dois condutores dos veículos que colidiram: Ademilson, servidor da UFPA e motorista do ônibus que levava os estudantes, e Keyne, caminhoneiro. 

Eram 25 estudantes que viajavam em direção ao Congresso da UNE, que aconteceria em Goiânia, a quase 2 mil quilômetros de distância, carregando seus sonhos e suas bandeiras. Iam se encontrar com outros milhares, numa convocação coletiva que sempre foi maior que os próprios corpos: o desejo de um Brasil mais justo, mais plural, mais vivo. Viajavam para se somar a uma história. Na mesma música em que Milton Nascimento canta para os estudantes, ele diz:

“A folha da juventude

É o nome certo desse amor.” 

Cada Congresso da UNE carrega um pouco disso: o amor pelo Brasil e a teimosia de continuar sonhando com a universidade pública, com o direito à educação, com um país onde a juventude tenha voz e vez. Teimosia antiga, que resistiu à ditadura, que enfrentou censura, tortura e morte.

Quantos estudantes já perdemos para sonhar este Brasil?

Lembro dos nomes de 1968. Dos corpos que tombaram para que hoje existam salas de aula, assembleias, liberdade. Lembro de outro paraense, Edson Luís, morto pela ditadura com um tiro no peito no restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro. Lembro dos desaparecidos. Dos que foram perseguidos por não caber no silêncio. Lembro também dos que vieram depois, das Marchas da Liberdade, das ocupações das escolas, das universidades abertas na madrugada.

E agora, Ana, Leandro e Welfeson.

É difícil escrever. O luto é uma travessia sem mapa, estrada sem chão. A morte de jovens assim não se processa em uma nota oficial. Ela insiste. Persiste. Se espalha pelos olhos de quem os conheceu e pelos de quem nunca os viu, mas reconhece neles um espelho de si.

Também já estive a caminho de um congresso da UNE. Levei cartaz, rifa, matei aula, expliquei para a família. Dormi pouco. Sonhei muito. Vi estudantes de Rondônia verem o mar pela primeira vez no Ceará. Vi mineiros descobrindo o frevo nas ladeiras de Olinda. Vi o país caber em um pátio, e o tempo se abrir nas conversas de madrugada. Vi corpos cansados, olhos atentos, sorrisos que nasciam da política, da amizade e de paixões. Vi brigas por direção e danças por liberdade. Defesas de teses apaixonadas e vi a vida universitária também como ela é quando se atreve a ser comum: cheia de contradições, desejos, esperanças.

“Coração de estudante,
há que se cuidar do broto
pra que a vida nos dê flor e fruto.”

O que faz alguém atravessar milhares de quilômetros para participar de um congresso? É fé, mas não no sentido religioso. É fé no encontro. No país que se constrói junto. É aposta de que um dia o Brasil pertença a todos os seus filhos.

Ana, Leandro e Welfeson apostaram. Foram. Não chegaram. Mas ainda assim chegaram: chegaram ao nosso peito. Chegaram ao chão da memória coletiva, onde cada nome se torna semente. Chegaram ao canto das mães, dos amigos, dos colegas de curso. Chegaram ao rosto da juventude brasileira, que não cansa de ir.

Quando perdemos jovens assim, não perdemos apenas pessoas. Perdemos futuros possíveis. E nos cabe o trabalho de não permitir que essas vidas virem número. Cada um deles tinha rosto, tinha voz, tinha desejos. Tinham textos por escrever, projetos por defender, livros por ler, músicas por descobrir. Tinham tempo. Tinham alegria e muitos sonhos.

“Alegria e muito sonho

Espalhados no caminho

Verdes, planta e sentimento

Folhas, coração, juventude e fé”

A canção segue. E a UNE também. Porque precisa seguir. Porque alguém precisa carregar os nomes, as lutas, os gritos. Porque parar seria deixar que a morte vencesse também o desejo. Porque há gerações que lutam para que estudantes possam existir com liberdade neste país — e essa luta não se enterra, se herda. Porque cada perda nos convoca, e porque o silêncio nunca foi resposta. O coração de estudante é ferido, mas não desiste. Ainda pulsa. Porque o país ainda precisa ser reinventado. E porque, enquanto houver juventude disposta a se encontrar, haverá futuro coletivo.

JÚLIA LOUZADA Já foi diretora da UNE, do DCE da UFSJ e do Centro Acadêmico de Psicologia.

Hoje, não assina esta coluna como psicanalista ou pesquisadora, escreve atravessada pela mesma dor que atravessa tantos: com o coração apertado pela angústia de saber que poderia ser qualquer um de nós — e com a esperança viva de que a UNE carrega todos os nossos sonhos.

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