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Filósofo, teólogo, professor aposentado de Ética da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, professor visitante em diversas universidades europeias, possui títulos de doutor honoris causa e escrit...ver mais

A urgência de um pacto social planetário

É necessário forjar uma coalizão de forças em torno de princípios inspiradores que sirvam de fundamento ético para um modo sustentável de vida

A demasiada inconsciência e o profundo negacionismo que reinam no mundo são tão graves que podem custar nossa vida nesse planeta. O fato é que estamos numa nova fase da Terra e da humanidade: a da irrupção da Casa Comum. A Covid-19 nos deu a lição que ainda não aprendemos: ela não respeitou os limites e as soberanias das nações.

Mostrou que há uma única Casa Comum e que ela pode ser toda afetada. Mas não tiramos nenhuma lição desse fato. Como disse o italiano Antonio Gramsci, grande teórico da política, a história nos dá lições, mas quase não há alunos. Pouquíssimos frequentaram essa escola e os mais omissos são os poderosos deste mundo, que pensam mais em suas economias do que em salvar a vida humana e a natureza.

Viemos do tempo do Tratado de Westfália, que, em 1648, criou a soberania dos Estado. Depois disso, a Terra e a humanidade mudaram consideravelmente. Os povos dispersos pelos continentes estão voltando do milenar exílio e criando a Casa Comum, na qual há espaço para todos, incluindo seus mundos culturais particulares.

Grande parte das tensões e guerras atuais são feitas dentro deste quadro ultrapassado das soberanias nacionais. Não despertamos para o novo tempo da unificação do mundo e da espécie humana, junto com a natureza, com o objetivo de nos salvar.

É urgentíssimo fazermos um pacto social mundial planetário, como fizemos o pacto social de nossas sociedades  e aquele da Westfália: um pacto cujo fim é a salvaguarda da vida e da biosfera, ameaçadíssimas pela razão que enlouqueceu e criou os instrumentos de sua própria autodestruição.

É imperativo um centro plural, democrático, representando os povos da Terra para administrar os problemas planetários e encontrar, democraticamente, uma solução para nós e para a natureza. Isso ficou claro no encontro do Brics no Rio de Janeiro (RJ), nos dias 6 e 7 de julho.

A Terra e humanidade são parte de um vasto universo em evolução e possuem o mesmo destino. A Terra forma com a humanidade uma única entidade complexa e sagrada, o que torna-se claro quando é vista do espaço exterior, como já testemunhado pelos astronautas.

Além disso, a Terra é viva e se comporta como um único sistema autorregulado formado por componentes físicos, químicos, biológicos e humanos que a tornam propícia à produção e reprodução da vida e que por isso é nossa Grande Mãe e nosso Lar Comum. 

A ciência tem mostrado que a Mãe Terra é composta pelo conjunto de ecossistemas nos quais gerou uma multiplicidade magnífica de formas de vida, todas elas interdependentes e complementares, formando a grande comunidade da vida.

Existe um laço de parentesco entre todos os seres vivos, porque todos são portadores do mesmo código genético de base, que funda a unidade complexa da vida em suas múltiplas formas.

Portanto,  reina uma real irmandade entre todos os seres, especialmente os humanos, belamente descrita pelo Papa Francisco em sua encíclica Fratelli tutti (2025).  A humanidade é parte da comunidade da vida e o momento de consciência e de inteligência da própria Terra. Através do ser humano, homem e mulher, a humanidade contempla o universo e permite que nós sejamos a própria Terra que fala, pensa, sente, ama, cuida e venera.

Importa, entretanto, observar que o contrato social atual ganhou um papel inflacionado e exclusivista. Foi ele que propiciou o antropocentrismo, denunciado pela encíclica Laudato sí do Papa Francisco. Ele instaurou estratégias de apropriação e dominação da natureza e da Mãe Terra, criando imensa riqueza para poucos e humilhante pobreza para a maioria.

O modo de produção vigente nos últimos séculos, atualmente globalizado, cindiu a humanidade entre os que têm e comem e os que não têm e não comem. Quer dizer, não conseguiu responder às demandas vitais dos povos dividindo a humanidade em dois. Eis um motivo a mais para fundarmos um contrato social planetário, que englobe a todos, dando condições para uma vida decente e rica em virtualidades criativas.

A consciência da gravidade da situação crítica da Terra e da humanidade torna imprescindível uma mudança na mente (cuidar da Terra como Gaia) e nos corações (estabelecer um laço afetivo e cordial com todos os seres).

Além disso, é necessário forjar uma coalizão de forças em torno de valores comuns e princípios inspiradores que sirvam de fundamento ético e de estímulo para práticas que busquem um modo sustentável de vida.

A Carta da Terra, sob a coordenação de Mikhail Gorbachev e um grupo de cerca de 20 pessoas de várias áreas de conhecimento, que tive a honra de integrar, elencou 16 princípios universais a partir da consulta a diversos estratos sociais. O resultado foi um documento de grande beleza e profundidade, que  pode ser lido na internet.

Adotado pela Unesco em 2003, o documento se propõe, além de outros fins pedagógicos, a criar as bases de um contrato social planetário. Hoje é divulgada e estudada em muitos países, criando um novo espírito face à Terra e à vida.

Chegará o dia em que poderá ser o fundamento do que estamos procurando urgentemente: uma governança planetária que garanta a todos um bem viver e conviver dentro da Casa Comum.

O documento pode ser lido em cartadaterrainternacional.org. Outro texto sobre o mesmo tema é O Bem Comum da Terra e da Humanidade, elaborado por Miguel d’Escoto Brockman, quando presidiu a Assembleia da ONU 2008-2009, em parceria comigo e serve como base para uma nova configuração da ONU.

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