Novamente, o destaque da semana fica com a arrogância corcoveante do império. Desesperado para estender no tempo sua condição imaginária, de líder do mundo livre e orientado pela busca de eficiência produtiva, Donald Trump rasga a máscara norte americana e anuncia o caos.
Definindo taxas comerciais que oscilam de 10% a 49% (ver quadro abaixo) ele assegura ondas inflacionarias, falências, insegurança e desemprego, com reações e consequências globais ainda imprevisíveis.
Haveria muito a dizer sobre isso. Vejamos o mínimo.
Do lado crítico, a crença de que o “tarifaço” vai atrair de volta para os EUA as empresas norte americanas que hoje produzem no exterior, recuperando empregos locais, ignora o fato de que tais deslocamentos se deram buscando reduções de custos. Basicamente, ocorreram por facilidades de superexploração de mão de obra barata, despreocupações com impostos, questões judiciais relacionadas a crimes ambientais e outras formas de vampirização capitalista. Como exemplo, considere-se avaliação realizada em 2019 pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, dando conta de que o iPhone X vendido por 900 dólares nos EUA passaria a custar 30 mil dólares, se fosse fabricado lá. E a este preço, o aparelho teria um mercado insignificante. Por isso, já em 2019, a quase totalidade dos 70 milhões de iPhones então em circulação, assim como os 30 milhões de iPads e cerca de 59 milhões de outros produtos da Apple eram feitos fora dos Estados Unidos. Algo semelhante ocorreu com a Ford, a General Motors e tantas outros gigantes que hoje se beneficiam de uma produção articulada, que terceiriza a produção de partes de seus produtos finais aproveitando facilidades relacionadas a condições diferenciadas de exploração, aqui, ali e acolá.
De outro lado, as novas tarifas vão implicar em amplo desarranjo de relações no mercado interno dos EUA (maior importador do planeta) e de trocas com países que sediam seus fornecedores de peças, serviços e produtos acabados.
Uma possível retração de importadores norte-americanos, pela dificuldade de repasse dos novos custos a seus clientes, pela demora de solução em disputas legais sobre a validade dos preços já contratados e eventuais perdas de mercadorias prontas para o embarque ou em trânsito, provocará reações em cadeia, deflagrando tentativas de renegociação e disputas por acesso a novos mercados, em outros países. Tende a ocorrer uma espécie de barata voa geral, que em médio prazo até pode fortalecer agrupamentos multilaterais como o Mercosul, os Brics e a Comunidade Europeia.
De outro lado, isso pode levar a reações de “reciprocidade”, com taxações dos produtos norte-americanos, pressões inflacionarias, crises de mercado e avalanche de ações judiciais em cortes nacionais e internacionais.
A diferenciação de impostos adicionais anunciada por Trump exclui a Venezuela e “privilegia” países da América Latina (10%), à exceção da Nicarágua (18%). Penaliza excessivamente países pobres como Camboja (49%), Laos (48%), Vietnã (46%) Sri Lanka (44%), Bangladesh (37%) e Botswana (37%), sugerindo haver ali pressões para negociar outros objetivos, relacionados sabe-se lá a que.

É bem verdade que tudo isso pode corresponder a movimentos de uma estratégia que ainda não alcançamos compreender, envolvendo interesses e objetivos dos quais só tomaremos ciência no futuro.
Por hora, como seria de esperar, estão surgindo interpretações e justificativas de todo tipo. Por exemplo, para Bolsonaro, o “tarifaço” de Trump corresponde a uma inciativa correta, que protegerá os EUA de um “vírus socialista“.
O fato é que, seja qual for o motivo real, estamos vendo acontecer uma tentativa de reconfiguração do que é válido, do que os mais fortes podem fazer a todos, no mundo em que vivemos.
É ilustrativo o fato de que nesta semana as notícias daquele baluarte da democracia agregaram ao que já sabíamos, envolvendo negação do aquecimento global, intenções de incorporação do Canadá e da Groenlândia, deportações brutais e sem justificativa legal estabelecida, de pessoas consideradas “indesejáveis”, guerra contra a ciência e desejo de mudança na nomenclaturas de referências geográficas (golfo do México?), mudanças nos textos escolares e livros de história, novidades como o cancelamento de vistos de entrada e a ameaça de expulsão para estudantes que em algum momento se manifestaram, de alguma maneira, contra o massacre genocida na Palestina.
Na mesma semana foi cancelado o visto de permanência de Oscar Arias, duas vezes presidente da Costa Rica e agraciado como o prêmio Nobel da Paz, por manifestações críticas que ele teria feito, aos avanços da intolerância e da autocracia, nos EUA.
Nisso se percebe que a arrogância e o desrespeito aos direitos e necessidades dos outros se associa à fragilidades de um sistema político que descuida da formação de jovens e dos impactos exercidos por uma educação deficiente, sobre a consciência coletiva dos adultos.
Observa-se, a partir disso, que os ataques a processos de construção de capacidades humanas orientadas para o partilhamento de deveres e direitos comuns, servem a outras finalidades. Trata-se, na prática, de captura dos governos por grupos de interesses privados, desejosos de concentrar poder e influenciar comportamentos futuros, normalizando quaisquer tipos de discriminações e desigualdades.
Uma vez que isso vem se dando em todos os espaços onde a democracia está sendo ou já foi capturada por interesses econômicos, compreende-se a autorização para privatização de mais 143 escolas, pelo governador bolsonarista de São Paulo, Tarcísio de Freitas.
O caso é triste, mas nada inédito. Ele se encaixa em outros movimentos que nos empurram na mesma direção.
Por exemplo, o Projeto de Combate à desinformações sobre o agro, que já estaria atuando em escolas de pelo menos 19 estados, e que contaria com apoio Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), da Cargil, da JBS, da CropLife Brasil (subsidiária no país da CropLife International, associação dos principais fabricantes de agrotóxicos do mundo) se destinaria a expandir “ uma educação positiva em relação ao agronegócio”. Em outras palavras: construir “ações para melhorar o conteúdo dos livros didáticos e promover a difusão do conhecimento científico”, reduzindo “desinformações e problemas conceituais nos conteúdos relacionados ao agronegócio”.
Em perspectiva crítica, trata-se de “fazer a cabeça dos estudantes e interferir nas escolas”, suprimindo conteúdos negativos (problemas com agrotóxicos, trabalho análogo à escravidão, conexão entre pecuária e desmatamento,… ), reescrevendo livros e modelando textos de maneira a limpar a imagem negativa do agronegócio.
Ana Chã (em Agronegócio e Industria Cultural ; Expressão Popular, 2018) examina este tema desde uma perspectiva de dominação cultural. Ela mostra que investimentos na área de comunicação estão sendo bem-sucedidos em gerar entre nós uma espécie de acomodação nacional à condição de colônia subordinada aos interesses de empresas do agronegócio transnacional.
Isto se agrava e se expande a todas as áreas com nossa dependência das Big Techs da área digital e com a associação destas aos interesses do império, contra nós.
Precisamos reagir enquanto há tempo. Está certo Lula, quando afirma que “Esse cidadão [Trump] não foi eleito para ser xerife do mundo, ele foi eleito para governar os Estados Unidos e ele que governe bem. E quem vai governar o Brasil somos nós”.
Mas precisamos apoiá-lo. A popularidade do governo está caindo e as mídias que nos controlam têm a ver com isso. O enfrentamento a elas exige ações pessoais. Conversas cara a cara, desmascaramento dos golpistas empoderados e dos serviçais do império, que estão trabalhando entre nós para enuviar a consciência nacional.
Para reconstruir nossas possibilidades de nação soberana e altiva, junto ao mundo multipolar que emergirá da presente crise, o Brasil precisa julgar os golpistas acusados, indiciar seus cúmplices, identificar e catar os fujões.
Ainda há tempo.
Uma música? De Samuca e a Selva: feito Fel, feito ouro.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.