Finalizadas as eleições municipais de 2024, o balanço para a esquerda foi desastroso. Quem mais cresceu foi o setor denominado como “centrão” pela mídia hegemônica. “Centrão” porque estaria por fora da polarização entre esquerda e extrema direita, mas, na verdade, se trata de uma direita neoliberal e fisiológica, que se alia a quem lhe paga mais.
O PSD de Kassab, desse “centrão”, foi o que mais conquistou prefeituras em todo o país. Quanto às maiores cidades, em São Paulo compõe a coligação do primeiro colocado, Ricardo Nunes; conquistou diretamente a prefeitura do Rio de Janeiro com Eduardo Paes; e disputa o segundo turno com candidato próprio em Belo Horizonte. MDB, PP, União Brasil seguem a lista dos que mais cresceram, todos do “centrão”, seguidos pelo PL de extrema direita.
O PT cresceu pouco, mesmo com Lula presidente, o que pode servir como termômetro para seu terceiro governo. Continua fraco nos municípios, apesar de ser o que mais elegeu pessoas autodeclaradas LGBT+. Para esse grupo social, contraditoriamente ao fracasso entre a esquerda em geral, o saldo foi positivo: um recorde de 225 candidatos eleitos, 130% a mais do que em 2020, segundo levantamento do instituto VoteLGBT.
Em segundo lugar, entre os que mais elegeram LGBT+ está o PSD e, em terceiro, o Psol, que antes se destacava por ser o partido que mais elegia LGBT+ em todo o país. O destaque do PSD na eleição de LGBT+ é novidade e se dá principalmente em cidades do interior, onde a polarização extrema direita versus esquerda não é tão forte quanto nas grandes cidades e o PSD acaba sendo uma das poucas opções eleitoralmente viáveis. A política LGBT+ demonstra estar se interiorizando mais do que os partidos de esquerda.
Cabe destacar que o candidato mais votado do Brasil, Lucas Pavanato do PL, se elegeu em São Paulo cumprindo a receita do neofascismo: destacando as pessoas trans como o principal inimigo interno a ser combatido.
Na mesma cidade, quem mais recebeu votos entre toda a esquerda foi a travesti Amanda Paschoal. A pauta LGBT+, portanto, não esteve em segundo plano como os machistas da esquerda lhe tentam colocar, definindo-a como “identitarismo” e “pauta de costume”. Ela está no centro da polarização entre a extrema direita e a esquerda.
Lucas Pavanato (PL) se elegeu em São Paulo cumprindo a receita do neofascismo: destacando as pessoas trans como o principal inimigo interno a ser combatido / Foto: Reprodução
Se o fascismo elegeu pessoas trans como suas principais inimigas, nada mais estratégico do que a esquerda elegê-las como lideranças do contra-ataque e mais, assumir a defesa da população trans em seu programa, de forma clara e explícita. E dada as votações históricas recebidas por travestis e mulheres trans, parece que o eleitorado de esquerda vem se identificando conosco: em 12 cidades, as mulheres mais votadas em 2024 são trans ou travestis.
No entanto, o que vemos por parte das velhas lideranças da esquerda – os velhos homens brancos, heterossexuais, cisgênero – é a defesa à capitulação. Respondem com vergonha às narrativas fascistas sobre “ideologia de gênero” (a qual já tratei em outros artigos desta coluna), aos ataques sobre linguagem neutra e às fake news sobre intervenções cirúrgicas ou hormonais em crianças que não correspondem às normas de gênero impostas, dentre outros pânicos morais.
:: A tal da “ideologia de gênero” e o perigo às “nossas crianças” ::
O campo majoritário do Psol, partido que diminuiu eleitoralmente pela primeira vez desde sua fundação, parece ter apostado nisso. Boulos simplesmente ignorou as provocações LGBTfóbicas de Marçal contra ele, quando era chamado de “Boules”, perdendo a oportunidade de contra-atacar. E aqui não se trata dele ter que defender a linguagem neutra ou o episódio com o hino nacional em seu comício (que eu mesma achei bem desnecessário), mas de afirmar seu compromisso com a comunidade LGBT+ sem se constranger com as pressões moralistas do ex-coach.
Parece que simplesmente deixou a cargo de Erika Hilton (Psol) e outras candidaturas LGBT+ a conquista esse eleitorado para sua campanha. Enquanto isso, mais e mais LGBT+ são eleitas, até em cidades pequenas.
O Psol continua, sim, sendo um bastião de luta contra a LGBTfobia. Mas perdeu espaço, inclusive nessa pauta. Talvez porque, em sua sanha de parecer menos “radical”, esteja virando mais do mesmo. E para que votar na cópia se se pode votar no original, não é mesmo? O PT elegeu não só mais LGBT+ no geral, mas também mais candidatas trans do que o Psol.
O desempenho terrível da esquerda mostra que é preciso mudar de estratégia. Contra a radicalização da extrema direita e seus pânicos morais, é preciso radicalizar na defesa dos direitos humanos. Se a extrema direita cresce na esteira da falência da democracia liberal e na criação de inimigos internos, a esquerda deveria mostrar que ela, sim, não tem nenhum compromisso com a burguesia e seu sistema e está ao lado da classe trabalhadora como um todo. Caso contrário, que entre logo para o “centrão”.
Quanto a mim, continuo construindo o setor fundador e radical do Psol, que cresceu política e numericamente nessas eleições. Espero que Boulos consiga reverter o cenário de São Paulo pelo bem de minha cidade natal e de todo o Brasil, mas para isso, tanto ele, quanto Lula, precisam rever sua estratégia. Fato é que se não fossem as próprias candidaturas trans, junto com as feministas e LGBT+ no geral, que combatem de frente o pânico moral extremista, com certeza a esquerda teria um resultado ainda pior.
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*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do PSOL-DF.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.
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