Estive com o Papa Francisco em duas ocasiões, a primeira no Encontro Mundial dos movimentos sociais com o Papa, na Bolívia, em 2015. Foi um momento bastante significativo para mim, pois eu seria a única religiosa de matriz africana presente naquele espaço, sendo eu mesma uma Makota, com minha indumentária: minhas saias rodadas, meu ojá. Estava ali representando a Coordenação Nacional das Entidades Negras (CONEN).
Após alguns diálogos com o movimento social, fui atrás de um presente para levar para o Papa. Confesso que não tinha ideia de qual seria o presente ideal para se dar a um Papa. Pensamos bastante e chegamos à conclusão que não seria o adjá, que é o instrumento sagrado de uma Makota.
E após dias e dias pensando nesse presente, descobri o mesmo na casa de minha irmã gêmea, ela tinha uma obra de arte de um amigo, produzido para ela e que seria o presente ideal naquele momento: um bordado feito de miçangas pequenas usadas para fazer as contas que usamos e que representam nosso sagrado, com a imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Toda forma de rezar é sagrada
Quando lhe entreguei o presente e fui perguntada da razão do mesmo, disse ter escolhido aquela imagem por se tratar de uma mulher, preta, padroeira dos católicos de meu país, bordada com as miçangas usadas no candomblé e na umbanda no Brasil. Muito linda, esta imagem significa que nossos sagrados convivem harmonicamente, o que precisamos aprender: conviver e nos respeitar independente da forma como rezamos. Recebi a benção do Papa e um terço.
Acredito que o Papa Francisco, com seu gesto, deu uma demonstração de sabedoria e de ensinamento a todas e todos os que, em nome de Deus, pregam o ódio, o preconceito e o racismo religioso. Papa Francisco ao receber uma mulher preta, brasileira e religiosa de matriz africana e com esta sentar à mesa, quebra paradigmas racistas e dá um claro recado: toda forma de rezar é sagrada.
O Encontro Mundial dos Movimentos Sociais com o Papa Francisco é um passo histórico para uma igreja mais humanizada, mais próxima do homem e que de fato reflita a ideia do que é a fé. A ideia desses encontros é debater formas de se garantir requisitos básicos para assegurar a dignidade humana, a justiça social, o desenvolvimento dos mais pobres e dos descartados. E o Papa Francisco dedicou seu papado a buscar esse ideal de fé.
Em sua encíclica Fratelli Tutti, Francisco define os movimentos sociais como sendo formado por pessoas que são “poetas sociais”, “semeadores de mudanças, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes ações interligadas de modo criativo, como numa poesia”. Esta definição nos traz a grandiosidade de pensamento de um profeta que vê o mundo, ainda, com os olhos esperançosos.
Direito sagrado à terra, ao teto e ao trabalho
Francisco defendia a vida em plenitude, e elegeu o direito sagrado à terra, ao teto e ao trabalho, como os três pilares de sustentação de seu pontificado. Para Francisco todos deveriam se dedicar a buscar esses direitos sagrados. O Papa defendia os pobres como sendo agentes de mudanças de uma realidade que não pode ser calada: a da indiferença diante da dor, da opressão e do desprezo à vida do outro.
Talvez esse seja o maior legado de Francisco, o de chamar a atenção dos cristãos para o verdadeiro significado do cristianismo, o legado de um homem que não criou nenhuma religião, mas espalhou o amor e a inconformidade com as injustiças sociais. Francisco trouxe em seu pontificado o real significado do papel social da fé e da igreja.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
Francisco incomodou a muitos pela sua insistência em assegurar a dignidade e a vida, clamando pelo respeito às diferenças e à democracia. Condenou a ganância, as guerras, a prepotência e implorou pela paz. Deixou claro que o amor de Cristo, que tantos dizem ser seguidores, não suporta o ódio, a usura, a opressão, nem a destruição da natureza.
Francisco foi um Papa que trouxe a ideia de uma fé contra colonial, na contramão de uma igreja que até então era o espelho de uma Europa colonialista, escravista e opressora. Francisco oxigena o cristianismo trazendo a lógica contra colonial e a representação da América Latina, tão explorada e desprezada pela Europa cristã.
Portal da Misericórdia
Estive novamente com o Papa Francisco em Roma em 2017, quando o Papa fechou o Portal da Misericórdia e de novo fui recebida como Makota, e seria a única religiosa de matriz africana presente naquele espaço. Havia no evento religiosos de diversas outras tradições, numa demonstração do respeito à diversidade e ao diálogo religioso.
Foi um momento de muita fé e respeito mútuo. Fui convidada a passar pelo Portal da Misericórdia, eu e outros religiosos que ali estavam para celebrarmos a beleza da fé na pluralidade.
Esse era o Papa Francisco, o Papa popular, que pedia a todos e todas que rezassem por ele, que demonstrava em suas falas e modo de vida o quanto humano era, o quanto acreditava em uma fé coletiva, independente da forma como se apresentava, pois, para ele toda forma de rezar é sagrada. E quem reza não mata, não destrói, não despreza.
Esta a imagem que tive dele nas duas vezes em que estive em sua presença. Um olhar generoso e calmo, uma serenidade e tranquilidade ímpares, que lhe permitia sentar ao lado dos diferentes e plurais.
Diante de tantas demonstrações de respeito e fortalecimento do diálogo, me cabe como Makota, pedir a Nzambi, Olorum, Javé, Deus que o acolha em sua infinitude. E que seus ensinamentos e exemplos sejam flechas de esperança em um mundo melhor, mais justo e fraterno. Onde todos tenham terra, teto e trabalho; tenham direitos à vida digna, onde sejam respeitadas toda e qualquer forma de rezar.
Vá em paz Francisco, que as sementes que o senhor semeou sejam fortalecidas e permitidas de brotarem, para que possamos ter um mundo mais humanizado, mais justo e fraterno. Que sua fé seja a centelha da esperança que tanto precisamos reavivar diariamente.
Makota Celinha Gonçalves é jornalista, colunista do jornal Brasil de Fato, empreendedora social da Rede Ashoka, coordenadora geral do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB) e Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL)
—
Leia outros artigos de Makota Celinha em sua coluna no Brasil de Fato
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal