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ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora dA saliva que umedece, poemariam – um tratado sobre línguas, 2025; Meu último poema 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros...ver mais

Jurema Finamour, a jornalista silenciada: o livro que eu tanto queria ler e não sabia

Embora o livro tenha saído em 2022, sempre é um bom momento para falar dessa baita obra que tira do olvido à jornalista silenciada Jurema Finamour

Tudo começou quando a adolescente Christa, ainda em Ijuí (RS), recebeu um livro emprestado do pai de sua amiga Marilia. D e v o r o u.  

Não só o leu com avidez, como essas histórias ficaram vivas em sua cabeça. Quando depois de algumas décadas, a já professora-pesquisadora e escritora Christa Berger, finalmente, se aposenta, esfrega as mãos e diz : é agora, e submerge na vida e obra daquela escritora. Então ela descobre Jurema Finamour, descobre no sentido de tirar dela o manto do cancelamento.

Embora o livro tenha saído em 2022 pela editora Libretos, sempre é um bom momento para falar dessa baita obra que tira do olvido à jornalista silenciada Jurema Finamour. Ou, para usar o termo cunhado pela também professora e pesquisadora Constância Lima Duarte, memoricídio. Dias atrás o teatro Renascença, em Porto Alegre, reabriu com a peça A mulher que virou bode, a partir do livro Jurema Finamour, a jornalista silenciada.

Não é por acaso que escolho publicar a coluna nesta semana. No dia 25 de julho de 2025, Jurema Finamour que foi presa política durante a ditadura empresarial militar, comemora 60 anos de sua libertação. E vejam o que são as coisas. O homem que teve que prender ela, advogado e delegado — também embaixo da mira pelo fato de ser brizolista — é o pai da amiga que anos mais tarde emprestará o livro autografado à adolescente Christa, que Jurema dará de presente ao seu cúmplice.

O próprio dia do golpe de 1964, a escritora e jornalista Jurema Finamour teve que fugir se tornando a segunda mulher mais procurada do Brasil. Ela era comunista e tinha viajado à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e publicado o livro 4 semanas na União Soviética, 1953, também viajou a China e Coreia e publicou China sem muralhas, 1956, viajou a Cuba em 1961 e veio a Porto Alegre para falar sobre a revolução e se encontrou com Leonel Brizola. Em 1962 vai publicar Vais bem, Fidel e nesse mesmo ano vai entrevistar o presidente cubano.

Por tudo isso ela é muito procurada. Foge. Pega um ônibus no Rio de Janeiro até Porto Alegre. Cruza a fronteira de táxi. Fica uns dias em Uruguai. Seu antigo amigo Pablo Neruda lhe oferece trabalho como secretária. Segue viaje para o Chile. Ao chegar, ela tem um raio X do que será a sua estada lá. Sua viagem tinha atrasado então “já não há almoço para ela”. Seu quarto “serve de passagem de uma parte da casa a outra”. Em seguida ouve os gritos do seu atual patrão : “Covardes, ele repete, não souberam enfrentar os militares”. Lembremos aqui que o poeta comunista morrerá doze dias depois do golpe no Chile. Não há provas de envenenamento. Teria ele também falado de si como um covarde?  

Premonição?

Pablo Neruda escrevia no livro Veinte poemas de amor :

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.

Quando Jurema Finamour finalmente consegue quem lhe edite Pablo e Dom Pablo, livro que conta as agruras que vivenciou junto a ele e Matilde, sua esposa, na casa de Isla Negra, infelizmente vai ser logo depois da morte do poeta. Esta publicação implicará seu cancelamento. Ela, uma jornalista, ativista, feminista, tradutora, secretária, amiga e tantas outras coisas que um dia cansa, mas cansa mesmo, e decide contar.

Assim, fica por anos distante y dolorosa como si hubiera muerto.

Até que muitos anos depois, chega uma jornalista do Sul do Brasil a ressuscitá-la. Dá-lhe novamente vida e aí vem uma turma de teatro e continua falando de Jurema.

A censura e os homens

 A gente sabe que existe censura em toda ditadura empresarial-militar, mas, e na ditadura patriarcal? Desta se fala menos. Não conhecemos quando se iniciou este loooongo período de dominação, mas sabemos que leva mais de 10.000 anos.

Por dar só um exemplo, o jornal Pasquim, tão avançado na época, quando sai Pablo e dom Pablo, eles que escrevem em um médio tão “alternativo e crítico da ditadura, a linguagem usada é de deboche e se estende por algumas edições ”, chamando a autora de Jurema Pinochet. Que tal, hein? Esquerdomachos sempre presentes. Nada de novo.

Cada vez que mulheres são descobertas, que tiram delas o manto seja do cancelamento, seja do esquecimento, me pergunto quantas mais haverá que não fazemos ideia.

Uma década atrás, eu era estudante de Letras, primeiro, e Escrita Criativa, depois, na Pontifícia Universidade Catória (PUC). Sempre conhecida como feminiSta, um dia um guri veio muito sério e prepotente a falar comigo. Ele tentava me explicar que se as mulheres não escreviam, frente a minha insistência de onde está a literaturA, ele dizia que não dava para mudar a história.

Acho que ainda em cada texto continuo respondendo a ele e aos seus amigos.

Por isso é tão importante a imensa pesquisa que nos oferece Christa Berger ao longo de 299 páginas. Porque as mulheridades sempre escreveram/escrevemos. Acontece que as editoras e editores fazem parte do sistema CIS-hétero-patriarcal-racista. O mesmo passa com a pouca literatura de autorias negras, de autorias dissidentes de sexo e gênero.

Comprei o livro em 2023, Christa, no autógrafo, escreveu “curiosa pela leitura”. Amiga, espero ter saciado, conversado e, sobretudo, agradecido teu enorme trabalho!

Na página 7 tu te perguntas se Jurema gostaria de ser lembrada. Arriscaria a dizer que sim, que com certeza. Quem escreve e publica quer ser lida. Mais ainda, muitas de nós (novamente eu e minhas certezas) gostaríamos de lhe dar aquele abraço à mulher que já em 1947 lançava e dirigia Mulher Magazine, uma revista toda feita por mulheres.

Ainda hoje as pessoas perguntam o que é o feminiSmo*. Eu diria, não é só ler a Simone de Beauvoir, mas as ações que a gente pratica. Levantar o manto de silêncio de uma escritora, hoje diríamos cancelada, marcando a intencionalidade patriarcal, essa é uma baita ação feminiSta. Obrigada Christa Berger.

E não por acaso o livro sai pela Libretos cuja editora é uma mulher, Clô Barcellos.

PS : Recomendo muito a peça de teatro. Incrível! Com grandes atrizes que cantam, que fazem um trabalho espetacular com o corpo e com o tempo em cena. Assim como a direção. Aqui toda a ficha técnica e mais. Imperdível. São desses casos raros que vale muito ver a peça e ler o livro.

*Escrevo FeminiSmo com S maiúsculo para diferenciá-la do feminino. Esta palavra é um adjetivo que as mulheridades podem ou não vir a se tornar, mas feminiStas deveríamos ser todas nós-outras que temos ciência da ditadura patriarcal e usufruímos das lutas, como hoje, poder escrever em um Jornal, ter CPF, votar, escolher ou não casar com um ou vários homens, pois o divórcio também é uma vitória feminiSta.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.

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