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Naiara Lira

Maio, múltiplas datas e o fio invisível do Lucro

Naiara Lira é atriz, cantora e produtora cultural na capital.
A verdade que busca se esconder em plena luz do dia, é que não dá mais: o capitalismo tem que acabar

Quando pensei sobre o que escreveria esse mês, lembrei que maio coleciona várias datas importantes: dia do trabalhadore, dia das mães, aniversário da assinatura da Lei Áurea e, em 2025, meus 40 anos de idade. Assim como a vida, que não escolhe uma data, mas vive todas, escolhi dançar por entre os assuntos que, apesar de nada parecidos, tem ao menos um assunto em comum: lucro.

Dia do Trabalhadore

Por mais que na atualidade sejamos levados a eventos e festividades de comemoração, o 1º de maio não é um dia de festa, mas um dia de luta.

Em dezembro de 2023, ainda sem conhecer o movimento Vida Além do Trabalho, passei a defender a redução da jornada de trabalho nas minhas redes sociais e fui surpreendida com dezenas de comentários negativos, centenas de seguidores deixando a página e uma queda gigante na quantidade de novas pessoas, o que resultou em uma desaceleração absurda do crescimento da minha conta que se estendeu por 2024 e, como não mudei muito de assunto, segue até o presente momento. 

E o que alegam meus “ex-seguidores”? Alguns dizem que quem se esforça consegue um trabalho melhor, outres ironizam dizendo frases como “quem mandou não estudar?”, outros ainda defendem que o fim da escala 6×1 (apenas uma folga semanal) também será o fim de muitas pequenas empresas e por aí vai. Sobre isso tudo, tenho três coisas a dizer:

1. O fim da escala 6×1 é com certeza o assunto mais importante neste momento do Brasil, uma vez que diz respeito a todo trabalhadore: se você precisa trabalhar para sobreviver, você está mais perto de morar na rua do que de se tornar um bilionárie, ou seja, amanhã pode ser você a ter apenas uma folga semanal;

2. A empresa que paga salário mínimo e precisa que seus funcionários só tenham uma folga por semana, merece quebrar; 

3. Tem um vídeo maravilhoso do Jones Manoel no YouTube chamado “o fim da escala 6×1 vai quebrar a economia?” Spoiler: Não, não vai. Isso é papo de burguês escravista safado.

Assim, voltamos à abertura da coluna de hoje, o lucro: trabalho para uns, férias pagas para outres.

Dia das Mães

Em primeiro lugar, o dia das mães é para mães de pessoas, seres humanos. Vi mais de um vídeo desejando feliz dia das mães para “mãe de pet”, “mãe de planta” “mãe reborn” e não. As mães são as pessoas mais impressionantes da humanidade por viverem – nem sempre de bom grado, justo – mas aceitarem abrir mão de parte de sua vida em prol de seus filhes. Eu sempre brinquei que até hoje tenho medo de engravidar na adolescência, mas a verdade é que eu simplesmente não quero ser mãe. Também por isso, aplaudo de pé as mães do mundo.

Dito isso, vamos enterrar o famoso ditado “mãe é tudo igual” e vamos falar de mãe preta? Segundo dois artigos encontrados no livro Dicionário da Escravidão e Liberdade (2018) :

“Sempre que um bebê branco nascesse, uma mãe escrava adentraria a sede da fazenda. Afastada a maior parte do tempo de suas comunidades e famílias, à ama de leite era conferida a delicada e cansativa função de cuidar dos membros mais jovens da família senhorial. As mamadas tomavam-lhe o dia e a noite, e a rotina era cadenciada por banhos e trocas de fralda. Durante o dia, enquanto os bebês dormiam, ou mesmo tendo-os acordados no colo, é provável que suas senhoras solicitassem a execução de outros serviços.” – Texto “Amas de Leite” da historiadora Lorena Féres da Silva Telles.

“Viajantes descreveram escravizadas com filhos muito pequenos, que iam para a roça amarrados às costas da mãe, e esta passava o seio por cima do ombro ou por baixo do braço, de forma a não parar de trabalhar nem mesmo para amamentar. Há relatos de mães atarefadas na faina agrícola que, para garantir que a criança não sofresse acidentes, a enterravam de pé, deixando apenas a cabeça de fora. Outras tinham que deixar seus filhos sob a guarda de mulheres velhas ou acidentadas, que os alimentavam com papas indigestas. Era comum que jovens mulheres recém-paridas, desnutridas e exaustas, procurassem amamentar seus filhos/as durante a noite, oferecendo-lhes, assim, alguma chance de sobrevivência num cenário de alta mortalidade neonatal e infantil.” – Texto “Mulher, Corpo e Maternidade”, da também historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado.

Ou seja, durante o período escravocrata mães pretas tinham dois destinos: o trabalho dentro da casa grande ou o trabalho fora dela. Ambas situações altamente precárias com alta taxa de mortalidade infantil. Em evento de lançamento do livro de uma autora negra, uma das pioneiras da capital federal, a educadora e musicista negra Lydia Garcia, fez uma fala que me marcou, uma verdade que sobrevive aos séculos: “Se hoje mulheres brancas conseguem trabalhar, viajar e ter seu próprio dinheiro, é porque mulheres negras ‘quase da família’, seguem sendo mucamas e “mães pretas” de seus filhes.” 

Preciso dizer que terceirizar o cuidado das crianças é mais uma estratégia do capitalismo para obter lucro?

Assinatura da Lei Áurea

Uma fala recorrente que me entristece pela falta de conhecimento responsável por sua repetição, é a ideia de que “o 13 de maio foi uma mentira”. Longe disso, no dia 13 de maio de 1888 uma multidão de dez mil pessoas se reuniram na porta do palácio do governo esperando a assinatura da princesa Isabel. Só que isso, ninguém aprende na escola.

Para contextualizar, em 1850, por pressão econômica da Inglaterra, o Brasil promulgou a Lei Eusébio de Queiroz, proibindo o tráfico de africanes escravizados. A partir de então, a má vontade era tanta, que só voltaram a tocar no assunto em 1868 por ocasião da abolição nos EUA (1863) e sua iminência nas colônias espanholas. A pressão interna começou a aumentar com o surgimento de 25 associações em 11 províncias (1868-71) movimentadas por abolicionistas que se tornariam imortais, como o advogado negro Luis Gama, o empresário, também negro, André Rebouças e o pedagogo Abílio César Borges. 

Em 1871 uma adaptação fajuta da Lei Moret (liberdade para recém nascidos e idosos em Cuba) foi lançada no Brasil como “Lei do Ventre Livre”. O que poucos sabem, é que “seu cerne dizia que os nascidos desde então ficariam até os oito anos, e facultativamente até os 21, sob cuidados do senhor de sua mãe.” Artigo “Processos Políticos da Abolição”, da socióloga Ângela Alonso, também parte da coletânea “Dicionário da Liberdade e Escravidão”. Ou seja, esse “ventre livre” não era assim tão fácil de usufruir.

Apenas em 1878 a pauta voltou para o congresso sempre sofrendo muita resistência do Partido Conservador. Assim, “de 1878 a 1885, formaram-se 227 sociedades e se realizaram cerca de 600 conferências. Essa ocupação ostensiva e pacífica do espaço público difundiu a ideia nas grandes cidades e atraiu novos ativistas, de estratos médios e baixos.” Ângela Alonso, idem fonte anterior.

Em 1884 o Ceará e o Amazonas aboliram a escravidão por conta própria, e finalmente em 1886, teve fim “a transição nas colônias espanholas e o Brasil era afinal o único país escravista do Ocidente” (idem fonte anterior). Ou seja,  a situação estava insustentável, com grande desobediência civil, envolvimento massivo da população e o surgimento das “redes libertadoras”: esquemas complexos de transporte e estadia que auxiliavam escravizades fugitivos a chegar no Ceará, no Amazonas ou em Santos – SP que, a essa altura, também já tinha declarado sua abolição independente. 

Por fim, em 1887, Dom Pedro II adoeceu, voltou para Portugal e deixou sua filha como regente. “Em fins de 1887, a imprensa abolicionista fez então chamamento às armas. Iniciou-se, aí, a última fase do processo político, já não mais de mobilização mas de adesões em cascata. É que setores da elite social, do Judiciário, da Igreja, a grande imprensa e o Partido Liberal, temerosos de uma guerra civil como a norte-americana, defenderam o fim da escravidão no curto prazo. […] O fator decisivo foi o Exército: ao se negar a caçar fugidos, inviabilizou a repressão estatal” (idem fonte anterior). 

Assim, no dia 13 de maio de 1888 “desde a manhã, uma multidão ocupou as ruas centrais da cidade e postou-se em volta do edifício do Senado e do Paço Imperial. […] Às duas horas da tarde o texto da lei saiu do Senado para a sanção imperial. Alguns jornais chegaram a afirmar que a concentração popular tomava uma proporção nunca antes vista em outra manifestação já ocorrida na cidade. Já eram mais de três horas quando a princesa Isabel finalmente assinou a lei que aboliu a escravidão. […] Quando apareceu na sacada do prédio, Isabel foi ovacionada por cerca de 10 mil pessoas que se aglomeravam na praça D. Pedro II. À noite, teve desfile de entidades abolicionistas e os edifícios das ruas centrais da cidade foram iluminados. As festas na corte se estenderiam até o dia 20 de maio.” Artigo “Pós-abolição; o Dia Seguinte” do historiador Walter Fraga, também parte do livro “Dicionário da Liberdade e Escravidão”. 

Mais uma vez, o lucro está por trás de mais um título brasileiro: o último país das Américas a abolir a escravidão negra.

Novo ciclo

Por fim, em maio de 2025 eu, mulher negra e artista, contra todas as estatísticas, como a de que “mais de 2.700 mulheres foram tiradas da escravidão desde 2003, 70% negras” (coluna Leonardo Sakamoto, UOL março de 2025) ou a de que as mulheres negras foram as vítimas em 72% dos casos de homicídio por armas de fogo em 2023 (matéria do site Alma Preta Jornalismo de março de 2025) os dados são do relatório do Instituto Sou da Paz, divulgado no mesmo mês.

Contra essa e muitas outras expectativas, completo 40 anos neste mês de maio de 2025. E, se o Brasil me quer escravizada – seja literalmente ou empregada na escala 6×1 – ou me quer morta, assassinada pelas famosas “balas perdidas” da polícia, é porque a branquitude fez e faz escola protegendo os seus e explorando o restante de nós para obter lucro!

Eu resisto, nós resistimos! Mas a verdade que busca se esconder em plena luz do dia, é que não dá mais: o capitalismo tem que acabar.

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* Naiara Lira é atriz, cantora e produtora cultural na capital.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.

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