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Habitação em Salvador: retrato da segmentação urbana

A lógica da necessidade move ações das camadas populares, sem acesso ao mercado imobiliário formal

* Por Gilberto Corso Pereira, professor Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA e coordenador do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles

O uso habitacional é responsável por grande parte do consumo do solo urbano e a provisão de moradia para a população demanda a própria construção da cidade. Assim sendo, é importante que a gestão urbana esteja articulada com as políticas de produção de habitação, ou, em outras palavras, as políticas habitacionais sejam sobretudo políticas urbanas e não sejam limitadas à produção de unidades habitacionais.

A evolução histórica de Salvador tem características próprias. O acesso da população de baixa renda à moradia em Salvador esteve historicamente vinculado a processos de parcelamento improvisado, autoconstrução e auto-urbanização envolvendo processos de ocupação coletiva de terras urbanas em Salvador, loteamentos clandestinos e outras formas de produção de habitação precária, que constituem ocupações “irregulares” na área urbana. Irregulares no sentido de que tais assentamentos se constituíram sem obedecer aos parâmetros urbanísticos estabelecidos e cresceram e se consolidaram fora das regras de segurança e conforto estabelecidos pelo poder público para edificações, parcelamento e infraestrutura e portanto, sem controle público. Estes parâmetros se aplicam a outras áreas da cidade, principalmente às áreas de interesse do mercado imobiliário. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) promulgado em 2016, reconhecendo esta situação, propôs uma ampliação das áreas reconhecidas como espaços urbanos que demandarão políticas, planos e leis específicas.

A lógica da necessidade é a que move as ações individuais e coletivas das camadas populares, sem acesso ao mercado imobiliário formal, e levou à formação de amplos assentamentos ocupados, construídos, urbanizados, e por fim no caso dos bairros mais antigos, consolidados da cidade popular. A informalidade urbana pode ser definida como “um conjunto de irregularidades em relação aos direitos: irregularidade urbanística, irregularidade construtiva e irregularidade em relação ao direito de propriedade da terra”. Como resposta a essas questões o Estatuto da Cidade, lei de 2001, fruto do movimento pela reforma urbana, formulou a Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), instrumento urbanístico que reconhece a produção socioespacial de determinada parcela do território para fins de manutenção e produção de habitação social. Esse instrumento visava garantir o direito à igualdade – por meio do Direito à cidade e à moradia digna – e o direito à diferença – através da elaboração de padrões e regime urbanístico especiais.

Este estoque de habitações constituídos através de processos de autoconstrução da habitação em bairros auto-urbanizados estão hoje predominantemente localizados nas poligonais das áreas classificadas como ZEIS pelo PDDU de 2016, que ampliou o conjunto das áreas definidas assim, no plano diretor anterior de Salvador (2008). Considerando os diversos tipos definidos pelo plano diretor, incluindo as ilhas, o número de ZEIS chegou a 234. Embora as condições urbanísticas e socioeconômicas das áreas agora reconhecidas como ZEIS não tenham se alterado entre 2008 e 2015 o novo plano diretor (2016) reconheceu a especificidade e a extensão dos assentamentos precários em Salvador que se estendem por quase toda a área do Subúrbio e parte do Miolo.

As ZEIS podem ser consideradas como proxy das áreas precárias da cidade, o próprio plano diretor municipal as caracteriza dessa forma. Dados compilados pela CONDER (2016), a partir do censo demográfico de 2010 (IBGE, 2010), apontam para uma população de mais de um milhão e meio de habitantes como residentes em ZEIS, com algumas zonas abrigando população de cidades médias, como por exemplo a ZEIS Nordeste de Amaralina com mais de 70.000 moradores. Se considerarmos que o mesmo censo de 2010 registrou para o município de Salvador uma população de 2.676.606 habitantes, temos que 56,5% da população de Salvador residiam em “Zonas Especiais” que demandam legislação específica, além da disposta no PDDU e na LOUOS.

Os dados do censo de 2022 ainda não estão disponíveis para aferir se estes percentuais se mantêm, mas não parece ter havido grandes transformações na proporção entre moradores das ZEIS e das demais áreas. Pesquisas qualitativas feitas pelo Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles indicam que o decrescimento de Salvador se deu, em parte: pela percepção de violência na metrópole; pela falta de oportunidades de trabalho na periferia de Salvador, o que levou muitos a buscar os municípios do interior como alternativa; e em parte, pela migração de profissionais de nível superior, integrantes da chamada classe média, que tinham uma segunda residência para uso no veraneio e fins de semana, ou têm condições de adquirir imóveis nos mais novos condomínios fechados horizontais no Litoral Norte.

Considerando os dados existentes, a pergunta óbvia é: como tratarmos como “especial” áreas que abrigam a maioria da população urbana? Se consultarmos algum dicionário veremos que o significado de “especial” é: i) o que não é geral, mas específico, particular; ii) o que é exclusivo para uma pessoa ou um grupo de pessoas. É necessário que a próxima administração pública, se pretende planejar para todos, considere isso no planejamento e gestão urbana da metrópole.

O outro lado desta leitura dos dados é a constatação de que os espaços regulados por legislação urbana – LOUOS e PDDU – abrigam um pouco mais de 40% da população da cidade. Estes habitantes, que residem nos espaços regulados pela legislação urbanística, o que arquitetos e urbanistas chamam de “cidade formal”, conseguem acesso à moradia predominantemente através do mercado imobiliário adquirindo habitações produzidas de forma empresarial. Estes moradores constituem o mercado consumidor dessa mercadoria específica – habitação – que tem sido historicamente o principal agente de estruturação socioespacial do espaço intraurbano.

Embora a provisão da moradia pelo mercado atenda somente a uma parte dos moradores de metrópoles como Salvador, este processo tem um profundo impacto na estruturação do espaço urbano.  A organização socioespacial da metrópole é, em parte, produto e, em parte, resultado da atuação dos agentes, empresariais ou não, envolvidos na produção da moradia. O setor imobiliário desempenha na metrópole um papel de protagonista no direcionamento do desenvolvimento urbano. O baixo dinamismo da economia de Salvador torna a produção da cidade um grande motor da economia municipal e reforça o papel das “máquinas de crescimento” urbano que direcionam seu poder de pressão na remoção dos entraves à mercantilização da terra urbana.

O crescimento atual se baseia no abandono de áreas mais antigas como o centro tradicional e a concentração em “novas” áreas expandindo sempre que possível a fronteira do crescimento com tipologias diferenciadas conforme as possibilidades, disponibilidades, acessibilidade e flexibilidade da legislação urbanística.

A redução do papel do Estado como agente ativo no equacionamento das carências habitacionais e a expectativa que essas carências venham a ser resolvidas pelo mercado privado como provedor de moradias tornará muito difícil a resolução dos passivos históricos existentes em Salvador. Programas de promoção de habitação social que visem a produção de unidades habitacionais em terrenos de baixo custo, como o MCMV, levaram a periferização e a extensão fragmentada do tecido urbano. As políticas devem ir além da provisão de moradias e se tornar políticas urbanas que consideram o ambiente natural, com suas características que hoje implicam em riscos para a grande maioria da população que habita as áreas populares; o ambiente construído com seus estoques de imóveis desocupados e abandonados, muitos em áreas plenamente infraestruturadas; necessidade de mobilidade e acesso à totalidade do espaço urbano. Enfim, construir uma metrópole para todos. 

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