Por Mônica de Carvalho*
Viviane de Andrade Sá**
Clarissa Maria Rosa Gagliardi***
Pamella Oliveria Silva****
Mudanças climáticas requerem novas formas de pensar o planejamento urbano. O debate internacional salienta a importância de articular a capacidade estatal ao capital social das populações locais para adaptação e reconstrução das cidades impactadas. Os desastres ambientais no litoral norte de São Paulo e a mais recente tragédia no estado do Rio Grande do Sul, atingindo prioritariamente populações negras e vulneráveis, tornam urgente a mobilização de atores diversos para soluções que promovam formas de produção do espaço urbano em que haja relação orgânica da população com seu território. As universidades e associações profissionais desempenham papel relevante.
Desde 2008, o Brasil conta com marco legal (Lei Federal 11.888/2008) que assegura o acesso gratuito à assistência técnica em projetos, obras e regularização fundiária para famílias de até três salários-mínimos, como parte integrante do direito social à moradia, conforme previsto no art. 6º da Constituição Federal/1988. A lei dialoga diretamente com a questão ambiental quando sugere evitar a ocupação de áreas de risco e de proteção, respeitando a legislação ambiental (art. 2º §2). A articulação com iniciativas locais está expressa em seu art. 3 § 1º. A Athis (Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social) deve ser oferecida às famílias, cooperativas, associações de moradores ou outros grupos organizados que as representem, priorizando o interesse social.
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A urgência de se pensar formas de adaptação das cidades às mudanças climáticas exige que se torne efetiva a legislação, mobilizando arquitetos, engenheiros, urbanistas e – por que não? – cientistas sociais na produção de soluções que considerem a diversidade dos territórios e de suas populações. Contudo, quase duas décadas depois de sua promulgação, o acesso à assistência técnica segue limitado, em parte porque o debate em torno da habitação se reduz à sua adequação, pautada por perspectivas universalistas e centradas em moradias de alvenaria, ignorando técnicas construtivas tradicionais de comunidades ribeirinhas, caiçaras, indígenas e quilombolas. A reconstrução de cidades após eventos extremos demandaria estratégia mais sensível às particularidades de cada comunidade e às suas formas de habitar. Em São Paulo, algumas iniciativas têm demonstrado mudança de paradigma mediada pela Athis.
Os Territórios de Interesse da Cultura e da Paisagem (TICP), estabelecidos pelo Plano Diretor da cidade de São Paulo em 2014, é instrumento urbanístico inovador que dá representatividade aos territórios com concentração significativa de bens históricos, ambientais e atividades de cunho cultural e educacional. O TICP Jaraguá–Perus, localizado no extremo norte da cidade de São Paulo, é um exemplo. As aldeias da Terra Indígena Jaraguá, que integra o TICP Jaraguá-Perus recebem regularmente turistas e moradores de São Paulo para vivências em sua comunidade, disseminando-se o conhecimento da cultura Guarani.
Embora haja mecanismos legais que estimulem essas atividades, para permanecer no território indígena haveria necessidade de programas de geração de renda, qualificação das moradias e infraestrutura para acomodação de grupos de visitantes. Recentemente, algumas iniciativas produzidas em conjunto com a comunidade têm valorizado a construção e manutenção das edificações seguindo técnicas construtivas tradicionais, experiências que podem servir de exemplo para outras assessorias.
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O projeto "Memórias, saberes e técnicas construtivas dos Guarani Mbya na Terra Indígena Jaraguá" – iniciado em maio de 2022 pela Escola da Cidade com apoio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo CAU/SP – é uma iniciativa que busca atender às demandas das lideranças locais, tendo por centralidade a aldeia Tekoa Pyau, alinhada à luta pelo direito à moradia e segurança alimentar. O projeto mapeou construções e, com base em questionário respondido por moradores, desenhou tipologias habitacionais e um plano para a aldeia, incluindo 80 moradias, espaços coletivos e sistemas agroflorestais. Em 2023, recebeu apoio da Escola de Direito da Universidade de Yale, através da Gruber Fellowships, para iniciar o projeto de construção de duas moradias no território.
O estabelecimento da TICP Jaraguá–Perus possibilitou a criação do Museu Territorial de Interesse da Cultura e da Paisagem Tekoa Jopo'I, outro mapeamento junto a moradores e lideranças de movimentos sociais que articulou os pontos de cultura no bairro de Perus com as comunidades indígenas guarani do bairro Jaraguá, a Comuna Irmã Alberta, um assentamento do MST, e a antiga fábrica de cimento Portland. O museu é o próprio território, o ambiente construído somado às memórias e narrativas de seus moradores. A visitação segue e seis trilhas educativas que retratam a relação de Perus com o regime civil militar, ressignificando os espaços públicos por meio da arte de rua, agroecologia e a ferrovia Perus-Pirapora.
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A Comuna da Terra Irmã Alberta, na Chácara Maria Trindade em Perus, era originalmente parte da fazenda Ithayê. Destinada a ser um lixão, foi ocupada em julho de 2002 pelo MST. Hoje, abriga cerca de 67 famílias. Desde 2021, o Instituto Laudenor de Souza realiza o projeto Consolidação Habitacional com apoio do CAU/SP, que inclui mapeamentos, definição de lotes e diretrizes para enfrentamento de riscos socioambientais, de remoções e de insalubridade, além de um Canteiro Escola de Construção Agroecológica.
As demais áreas do Tekoa Jopo' ainda carecem de assistência técnica e figuram entre os maiores índices de vulnerabilidade social da cidade. Entretanto, iniciativas como as descritas podem estimular articulações entre o direito à moradia, memória, território e identidade cultural, aparato que já repercute entre extensões universitárias, assessorias técnicas e editais de fomento, como os criados pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), que destina, desde 2016, parte de seu orçamento para Athis.
Diante da escalada nas mudanças climáticas e seus reflexos cada vez mais severos sobre os territórios e as populações mais vulneráveis, e da insuficiência das soluções técnicas e padronizadas impostas às cidades à revelia das especificidades locais, é hora de reconhecer que nos saberes das populações que preservam e reinventam suas formas de habitar e ocupar seus territórios podem estar soluções mais criativas e efetivas a serem articuladas pela Athis.
*Mônica de Carvalho, socióloga do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP e pesquisadora da Rede INCT Observatório das Metrópoles-Núcleo São Paulo.
**Viviane de Andrade Sá, arquiteta e urbanista, docente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Paulista (Unip) e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP.
***Clarissa Maria Rosa Gagliardi, docente do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia da USP e pesquisadora da Rede INCT Observatório das Metrópoles-Núcleo São Paulo.
****Pamella Oliveria Silva, graduanda do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Paulista (Unip).
*****Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.