No último mês, os moradores da Favela do Moinho — última favela remanescente na região central de São Paulo (SP) — conviveram com o sobrevoo constante de helicópteros e a presença ostensiva da Polícia Militar, o que resultou em confrontos com a comunidade. O terreno, propriedade da União, foi cedido ao governo do estado de São Paulo para a implantação do Parque do Moinho e da Estação Bom Retiro, da Linha 8-Diamante da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM).
O confronto com a polícia ocorreu após o descumprimento de um acordo firmado entre as lideranças comunitárias e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), que previa que as construções só poderiam ser demolidas após a realocação de todos os moradores. A demolição parcial poderia comprometer a estabilidade das demais unidades habitacionais, devido ao compartilhamento estrutural entre elas. Segundo a CDHU, aproximadamente 900 famílias vivem atualmente na área afetada, todas incluídas no plano de remoção em razão das obras. Estima-se que cerca de 30 famílias já tenham deixado o local.
Como parte da política de remoção, o governo do estado instalou um núcleo de atendimento próximo à comunidade, oferecendo duas formas de apoio: auxílio-aluguel de R$ 800 e acesso a financiamento habitacional de até R$ 250 mil, com pagamento em até 30 anos, comprometendo no máximo 20% da renda familiar. No entanto, moradores denunciam pressões para aceitar as propostas da CDHU e relatam orientações para declarar renda superior à real, a fim de atender aos critérios do financiamento.
Com o passar dos dias, as tensões se intensificaram, levando o governo federal a intervir. No dia 15, o ministro das Cidades, Jader Barbalho Filho, e o Governo do Estado anunciaram um plano de reassentamento por meio da compra assistida do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV). As famílias continuam recebendo até R$ 250 mil para a aquisição de um imóvel — sendo R$ 180 mil provenientes do MCMV e R$ 70 mil do programa estadual Casa Paulista — destinado a pessoas com renda de até R$ 4.700 mensais. Também foi anunciada a ampliação do valor do aluguel social, que passará de R$ 800 para R$ 1.200 por mês.
Apesar da ampliação do auxílio-aluguel e nova modalidade de financiamento, famílias ainda vão enfrentar dificuldades para acessar moradias
O alto custo do aluguel em São Paulo tem se tornado um obstáculo quase intransponível para as famílias de baixa renda. Segundo lideranças dos movimentos de moradia, além de não conseguirem arcar com os valores praticados no mercado, essas famílias enfrentam barreiras burocráticas, como a exigência de comprovação de renda para a locação de imóveis, a necessidade de fiador ou garantias locatícias, análise de crédito, entre outras.
Dados do Índice de Aluguel QuintoAndar Imovelweb indicam que bairros como Bom Retiro e Campos Elíseos — onde está localizada a Favela do Moinho — figuraram, em alguns meses, entre os dez bairros que mais se valorizaram na cidade nos últimos dois anos, refletindo um forte indicativo de disputa pela ocupação dessas áreas. Ou seja, mesmo com a ampliação do auxílio-aluguel para R$ 1.200 mensais — conquista atribuída à pressão dos movimentos de moradia — as famílias provavelmente continuarão enfrentando dificuldades para acessar moradias na região.
Esse cenário é resultado de uma combinação de fatores que se intensificaram nos últimos anos. O boom imobiliário promoveu uma crescente demanda por terrenos, associada às transformações urbanas — como a construção de novos empreendimentos, a instalação de equipamentos públicos e requalificações urbanas —, o que impulsionou os preços no mercado. Como o valor do aluguel está diretamente atrelado ao preço de mercado dos imóveis, quanto maior a valorização, maior tende a ser a rentabilidade exigida pelos proprietários.
Durante a pandemia, os preços dos aluguéis registraram aumentos ainda mais expressivos, impulsionados pela alta inflação do Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), utilizado como principal referência para reajustes contratuais. Esse índice disparou devido à valorização de commodities como soja, milho, minério de ferro e petróleo. Em 2021, o IGP-M chegou a ultrapassar os 30%, o que pressionou significativamente os custos de locação. Os preços dos aluguéis são altamente sensíveis a alterações econômicas e territoriais. Fatores como o acesso ao crédito habitacional, reajustes no salário mínimo e flutuações nos preços das commodities influenciam diretamente os valores praticados no mercado de locação residencial.
Diante dessas dificuldades, muitas famílias acabam recorrendo ao mercado informal de cortiços, muito comum na região, sem conseguir romper com o ciclo de precariedade habitacional e os altos valores cobrados. Um levantamento realizado em 2018 pelo Fórum Mundaréu da Luz mostrou que, para a população de baixa e extremamente baixa renda, os valores pagos mensalmente por quartos em cortiços e pensões na região variavam entre R$ 400 e R$ 700. Segundo a CDHU, 25% das famílias da Favela do Moinho possuem renda de zero a um salário mínimo, não conseguindo sequer acessar a política habitacional de financiamento.
Atualmente, o ônus excessivo com o aluguel é o principal componente do déficit habitacional em São Paulo. Apesar do aumento no valor do benefício, a lógica do mercado imobiliário — baseada na rentabilidade e na valorização constante dos imóveis — compromete a eficácia da política de auxílio-aluguel. Embora seja uma medida transitória, os altos valores praticados no mercado de locação dificultam a superação das barreiras estruturais impostas pela própria dinâmica imobiliária.
Transformação em curso
As ações para a implantação do Parque do Moinho e da Estação Bom Retiro, da Linha 8-Diamante da CPTM, fazem parte de um conjunto mais amplo de transformações na área central da cidade. Entre essas mudanças estão a transferência da sede do governo do estado para o bairro dos Campos Elísios e a implementação do Plano de Intervenção Urbana (PIU) do Setor Central. O PIU Setor Central abrange uma extensa área do centro expandido de São Paulo — incluindo bairros como Barra Funda, Campos Elíseos, Bom Retiro, Santa Ifigênia, República, Sé, Brás e Luz.
Desde as primeiras discussões, em 2018, a aprovação do PIU do Setor Central — formalizada em setembro de 2022 e que substituiu a antiga Operação Urbana Centro — vem recebendo diversas críticas. Apesar de o plano ter como objetivo principal a requalificação urbana e o aumento da oferta de habitação social na região central de São Paulo, ele enfrenta questionamentos de diferentes setores.
As críticas apontam a ausência de ações voltadas à recuperação das áreas já ocupadas, a prioridade dada à construção de novas unidades habitacionais em vez da reabilitação de estruturas existentes, e a falta de sensibilidade quanto à diversidade e complexidade das demandas habitacionais do centro. Também são frequentes as reclamações sobre a destinação de terrenos públicos a grupos que não correspondem ao perfil prioritário para políticas de subsídio habitacional, além da carência de uma avaliação mais aprofundada sobre a efetividade dos incentivos fiscais e urbanísticos propostos.
A proposta de construção da nova sede do governo do estado de São Paulo prevê a desapropriação de cinco quadras na região central da capital, impactando diretamente cerca de 600 famílias. O projeto também inclui a desativação do Terminal Princesa Isabel e da Praça Princesa Isabel, áreas que foram doadas pela prefeitura ao governo estadual. Embora a mudança possa ser apresentada como uma tentativa de aproximar a administração estadual dos desafios urbanos da cidade, sua implementação tem ocorrido sem diálogo efetivo com os moradores afetados, com a sociedade civil e com organizações que atuam historicamente na região — principalmente na região da Cracolândia.
Além disso, a existência de diversos edifícios públicos ociosos no Centro — muitos pertencentes à própria administração municipal — levanta questionamentos sobre a real necessidade de promover políticas baseadas na destruição e substituição, em vez de investir na reabilitação de áreas já construídas, como aponta o pesquisador Aluízio Marino. A desativação do Terminal Princesa Isabel, por sua vez, também deve gerar impactos significativos, especialmente para os moradores da região e para os usuários do Hospital Pérola Byington — referência no tratamento de câncer ginecológico e mamário —, que perderão o principal ponto de acesso ao serviço de saúde.
Mais uma vez, a política urbana em curso expõe uma profunda incoerência entre os discursos oficiais e a realidade enfrentada pelas famílias impactadas. Embora o governo justifique projetos de remoção e transformação urbana com promessas de requalificação e ampliação da oferta habitacional, o que se vê na prática são deslocamentos forçados, precarização das condições de moradia e exclusão sistemática das famílias de baixa renda do Centro da cidade, como é o caso da comunidade do Moinho.
A valorização imobiliária — estimulada por dispositivos legais e pela especulação — tem elevado os preços a patamares incompatíveis com a renda das populações mais vulneráveis, tornando ineficazes os auxílios financeiros oferecidos. Mesmo com o aumento do aluguel social, os custos de locação seguem altos, e o acesso à moradia digna permanece fora do alcance de muitos.
O atual modelo de intervenção urbana parece priorizar interesses econômicos e do mercado imobiliário, em detrimento do direito à moradia e da permanência de comunidades historicamente estabelecidas. Ao ignorar as demandas locais e comprometer a diversidade que caracteriza o Centro de São Paulo, esse projeto urbano não só falha em promover justiça social, como também contribui para a fragmentação do tecido urbano e o aprofundamento das desigualdades.
* Marília Gabriela Bello Garcia – Pesquisadora do Observatório das Metrópoles São Paulo – Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (LabHab FAU USP)
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.