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No meio do caminho tinha um patinete

Se o transporte é um direito, por que um novo serviço estruturado sobre áreas e vias públicas é oferecido apenas em algumas partes da cidade?

Parte da cidade de São Paulo voltou a contar com o serviço de aluguel de patinetes elétricos neste ano. De maneira constante e acelerada, as empresas EasyJet Mobilidade (Jet) e Whoosh têm espalhado os veículos nas áreas mais ricas da cidade, em uma expansão rápida em que regras são atropeladas e o espaço público comprometido. Conforme reportagem de 27 de agosto do SPTV, da TV Globo, o número de aparelhos saltou de 2 mil, no começo do ano, para 7,1 mil, em agosto, um crescimento acompanhado por problemas que envolvem distribuição desigual das estações, estacionamento irregular e descumprimento de regras vigentes. 

Antes de detalhar os problemas relacionados a este aumento, porém, cabe destacar que a existência de redes de patinetes, por si só, não é necessariamente algo negativo. Em uma metrópole congestionada, em que a população sofre para conseguir se deslocar, ter mais opções de mobilidade é algo bom. Com a crise no sistema de transporte público, todo mundo tem buscado saídas, e ter aparelhos disponíveis para deslocamentos curtos pode ser parte da solução imediata para uma situação emergencial. 

Afinal, todos, especialmente os mais pobres que dependem do transporte público, sentem os efeitos do encolhimento da rede de ônibus municipais – em 2013, a frota era de mais de 15 mil ônibus, em 2025 tem oscilado entre 13,2 mil e 13,3 mil, em uma redução que se reflete na queda do uso do sistema. Nos sete primeiros meses do ano, após o aumento das passagens em janeiro, o número de passageiros voltou a cair na capital, algo que, nem de longe, tem recebido o destaque devido na mídia. Nos trilhos, as privatizações têm impactado diretamente os usuários. O caso mais recente e emblemático é o do fim do serviço 710, resultado da privatização da linha 7 Coral. Em função da mudança, os trens que conectavam a linha 7 com linha 10 Turquesa não realizam mais o percurso, forçando milhares de pessoas a uma baldeação extra na já superlotada Estação Barra Funda. 

Quem pode, vai buscar alternativas, e a multiplicação de patinetes talvez seja melhor do que ter mais motos ou carros circulando. Ter redes de bicicletas e patinetes compartilhados para ligações rápidas entre diferentes sistemas de transporte público ou meios complementares para conectar bairros a terminais poderia, inclusive, ser bom, especialmente nas periferias.

Desigualdades no mapa

O problema é como os sistemas de compartilhamento avançam. O mapa do Termo de Permissão de Uso para as estações explicita a lógica por trás da nova estruturação da rede de ambas operadoras. A maioria está localizada nas áreas mais ricas da cidade, no quadrante sudoeste, quase todas no lado do centro da margem dos rios Tietê e Pinheiros, com apenas algumas na outra margem, acompanhando o trajeto da infraestrutura cicloviária do Butantã. 

Mapa oficial da localização do Termo de Permissão de Uso para compartilhamento de patinetes em setembro de 2025

A própria legislação já prevê e permite tal distorção, estabelecendo grupos e proporções desiguais para o serviço a ser oferecido para a população. Pela divisão oficial, as empresas são obrigadas a disponibilizar em bairros mais distantes do Quadrante Sudoeste o equivalente a entre 5% e 20% da frota disponível nos bairros centrais, como Pinheiros e Itaim Bibi. Em Itaquera e Sapopemba, a regra determina 10%. Em Capão Redondo, Grajaú, Parelheiros e Jardim Ângela, 5%. São exemplos claros de prioridades invertidas. 

Se o transporte é um direito, como determina o Artigo 6º da Constituição Federal, por que um novo serviço estruturado sobre áreas e vias públicas é oferecido apenas em algumas partes da cidade? A concentração das novas redes nos setores mais ricos agrava, assim, a desigualdade estrutural na mobilidade urbana na metrópole de São Paulo. Por que uma divisão tão desproporcional se as operadoras se beneficiam e lucram com o uso do espaço público mantido com recursos públicos, algo central em seu modelo de negócios? Não caberia sonhar com serviços públicos de patinetes elétricos servindo para facilitar deslocamentos até estações e terminais de transporte público também em áreas periféricas?

Calçadas obstruídas

Para piorar, além da desigualdade espacial na distribuição, o uso irregular do espaço público tem sido uma constante – nos aplicativos, as zonas de retirada não são as mesmas que constam no mapa oficial, algo fácil de verificar e, em tese, de fiscalizar. As estações ainda não são sinalizadas adequadamente, aliás, e, apesar de a legislação permitir que sejam instaladas também no meio-fio, no lugar das vagas de carros, só têm sido liberadas nas calçadas, estrangulando ainda mais o já limitado espaço para pedestres. Em tese, patinetes elétricos não podem, pela lei, circular nas calçadas, violação constante, comum e fácil de constatar. O poder público também tem responsabilidade ao se omitir tanto na organização quanto na fiscalização.  

O descumprimento de regras é corriqueiro. Talvez a mais grave seja a que determina o limite de velocidade de 15 km/h para usuários novatos nas dez primeiras viagens, para só depois liberar para 20 km/h, algo que tem sido ignorado e talvez ajude a entender o aumento do número de ocorrência envolvendo o equipamento. O número saltou de 17, em 2024, para 44, em 2025, segundo informações divulgadas pelo Corpo dos Bombeiros na reportagem citada da TV Globo. A falta de cuidado em ampliar gradualmente o limite de velocidade não é o único problema, mas também a capacidade de aceleração de tais aparelhos. Apertando um botão é fácil e rápido atingir uma velocidade incompatível para circulação em áreas em que as pessoas estão caminhando.  

Conforme indicado, ter mais opções de deslocamento é algo bom, a diversidade é bem-vinda no monótono cenário de carros e motos entupindo os centros urbanos. A falta de regulamentação, fiscalização e critérios de justiça social no novo serviço, porém, agrava o desequilíbrio na mobilidade, coloca pedestres em risco e atrapalha a mobilidade ativa, com as máquinas coloridas tornando-se obstáculos cada vez mais constantes para quem caminha. 

Não é a primeira vez que São Paulo vivencia uma rápida expansão de patinetes elétricos. A última aventura do tipo foi da empresa Grow, fusão da Yellow com a mexicana Grin, que operou aparelhos na cidade entre 2018 e 2020 em um modelo igualmente problemático. Desta vez, ambas as operadoras são multinacionais que começaram na Rússia e hoje atuam em vários países. Chegaram com uma estratégia agressiva, com preços altos e concentração em áreas ricas, uma combinação que reforça a perspectiva de mobilidade como uma mercadoria, mais do que um direito. 

Desenha-se um futuro em que, quem pode pagar, aluga um aparelho e tenta, de maneira individual, encontrar uma solução para se deslocar em um cenário cada vez mais caótico. Um contexto em que o simples ato de caminhar torna-se cada vez mais difícil. Em um ambiente urbano desenhado para carros e motos, e não para pessoas, agora, mesmo na calçada, pedestres têm que desviar de veículos rápidos, ou encontrar maneiras de passar novos obstáculos elétricos obstruindo a passagem.

Afinal, no meio do caminho, tinha um patinete, tinha um patinete no meio do caminho.

*Daniel Santini, mestre e doutorando pela FAU-USP, coordenador na Fundação Rosa Luxemburgo e pesquisador colaborador do Observatório das Metrópoles do Núcleo São Paulo.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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