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A economia política do plano diretor de Porto Alegre

Porto Alegre entrou em um momento decisivo de debate do Plano Diretor

Tarson Núñez*

Porto Alegre entrou em um momento decisivo de debate do Plano Diretor. Um processo truncado, confuso e desorganizado, mas que seguramente vai ter um impacto duradouro sobre o futuro de nossa cidade. Ainda que este debate esteja sendo conduzido de uma maneira fragmentada e superficial, a discussão do Plano diz respeito aos marcos legais em torno dos quais se vai organizar o desenvolvimento da cidade nas próximas décadas. Por isso é fundamental que se discuta o tema com mais profundidade. Mas aqui a ideia não é discutir o conteúdo ou a qualidade das propostas, mas buscar estabelecer um critério que nos permita entender melhor quais os interesses que se articulam por trás das ideias em debate.

O termo economia política é utilizado comumente para referir-se a estudos interdisciplinares que se apoiam na economiasociologiadireito e ciências políticas para entender como as instituições e as dinâmicas políticas influenciam a conduta dos mercados, o desempenho da economia e suas consequências para a sociedade. Esta é uma abordagem que pode ser interessante para analisar as disputas em torno do Plano Diretor, uma vez que este olhar sobre os interesses econômicos e sociais envolvidos no debate pode nos dar indicações interessantes sobre os resultados possíveis do processo.

Desde este ponto de vista, uma maneira bem objetiva de avaliar o debate do Plano Diretor é olhar quem está envolvido no debate, quem defende tal ou qual proposta. E uma boa forma de identificar estes interesses, para além dos discursos bem-intencionados de parte a parte, podem ser as duas notas que foram publicadas nas semanas que precederam a audiência pública do plano no início de agosto. Do ponto de vista do seu conteúdo, um olhar superficial sobre os dois documentos poderia dar a impressão de não haver diferenças, ambos afirmam defender uma cidade melhor, ainda que uns se declarem satisfeitos e os outros critiquem a condução do processo. Mas uma breve análise das assinaturas de cada um dos documentos fornece uma visão bem clara de dois blocos sociais que disputam a hegemonia sobre o Plano Diretor.

No dia 5 de agosto, um grupo de 58 entidades divulgou um manifesto em apoio à revisão do Plano Diretos proposta pela prefeitura, afirmando que “O novo plano tem legitimidade técnica e respaldo social e representa um marco necessário e urgente para preparar a cidade para os desafios da próxima década”. De acordo com estas entidades o plano apresentado dá conta de “fazer frente à crise climática, à necessidade de inclusão social, à valorização da mobilidade urbana e à geração de oportunidades em todas as regiões da cidade”. Este grupo se apresenta como um coletivo de mobilização “para que Porto Alegre tenha mais mobilidade urbana, geração de empregos, empreendedorismo, crescimento econômico, segurança, densificação ordenada, valorização de áreas e bairros mais completos, gerando mais qualidade de vida à população”.

Entre as entidades que assinam esta nota de apoio há um perfil muito nítido, que revela uma significativa homogeneidade social e econômica. Dos 58 signatários, 72% (42) são entidades empresariais, que vão das mais gerais, como Fiergs e Federasul, passando por sindicatos e associações das áreas do comércio (CDL, AGAS), hotelaria (Sindha, Sindihospa), construção civil (Sinduscon, Secovi), combustíveis (Sulpetro), além de várias entidades de micro e pequenas empresas (Associação dos Comerciantes da Restinga, Associação das Empresas dos Bairros Humaitá-Navegantes). Essa representação empresarial não se limita a estas associações representativas de setores, uma vez que inclui também entidades como a LIDE, um agrupamento nacional que se apresenta como “a maior e mais influente organização de líderes empresariais da América Latina”, além da Amcham, a Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos.

Além deste conjunto de entidades representativas empresariais, o documento é assinado também por instituições que se estruturam como espaços de reflexão e formulação de ideias. Organizações como o Instituto Cultural Floresta, o Instituto de Estudos Empresariais, o Instituto Caldeira, o Tijolo Hub, o Transforma RS e o Instituto Atlantos. Todos eles têm em comum a defesa do livre-mercado, a redução do papel do Estado e o papel dirigente da livre iniciativa como motor do desenvolvimento. Este tipo de organização corresponde a mais de 15% dos signatários do documento. Os restantes correspondem a associações profissionais, como a Associação Gaúcha dos Advogados de Direito Ambiental Empresarial, a Sociedade de Engenharia, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia e a Associação Gaúcha dos Advogados do Direito Imobiliário e Empresarial. Completam este grupo 3 associações civis: a Associação da Classe Média, conhecida por seu engajamento em causas políticas conservadoras, a Associação Delta do Jacuí e a Associação do Corpo Consular do Rio Grande do Sul (o que é curioso, uma vez que esta associação se compõe de representantes de governos estrangeiros na cidade). Este breve resumo nos dá um perfil do bloco que se manifestou em apoio à proposta de Plano Diretor da prefeitura.

Dias antes da audiência um outro manifesto é publicado, agora com entidades contrárias à proposta da prefeitura. De saída uma primeira distinção entre os dois documentos. Se a manifestação de apoio tinha 58 signatários, o documento contra a proposta do plano vinha com assinatura de 208 entidades. O documento tinha como centro uma crítica ao processo de discussão do Plano, apontando graves problemas na condução do debate por parte da prefeitura. Não é objeto deste artigo entrar no mérito desta questão, nosso foco aqui é utilizar os dois documentos como uma forma de identificar os interesses políticos e econômicos que se articulam neste debate acerca do plano. Para isso o método utilizado é analisar a composição de cada um dos blocos que se articulam em torno deste processo.

De saída é possível perceber uma primeira diferença entre os dois grupos: o fato de que o documento contrário ao plano tem quatro vezes mais assinaturas do que a carta do grupo empresarial. Esta diferença já aponta para o fato de que, em princípio, ao que tudo indica há muito mais gente contrária à proposta de prefeitura do que pessoas favoráveis. Mas para além desta diferença quantitativa uma análise mais cuidadosa, qualitativa, das duas listas aponta para uma diferença nítida em termos da composição de cada um dos grupos.

A segunda carta é assinada por um contingente heterogêneo e diverso, que envolve instituições acadêmicas, associações comunitárias, movimentos sociais, grupos estudantis, ambientalistas, grupos culturais, representações sindicais, movimentos de mulheres, de negros, de grupos LGBT, de indígenas, associações profissionais, ONGs, cooperativas, igrejas e entidades de Direitos Humanos. Então de saída já se pode perceber que o debate se polariza entre um bloco bastante homogêneo em termos sociais, políticos e econômicos e de outro uma grande diversidade de atores sociais.

Esta distinção se materializa também do ponto de vista da expressão destes grupos no território. Analisando a composição do primeiro grupo o que temos via de regra são entidades de âmbito mais geral, que atuam em âmbito municipal, estadual ou nacional. Neste grupo as únicas referências a territórios na cidade são a Associação das Empresas dos Bairros Humaitá-Navegantes e a Associação do Comércio e Indústria da Restinga. Além delas temos também uma Associação Delta do Jacuí, situada na Ilha da Pintada, na rua Martinho Poeta, uma via que se destaca pela presença de inúmeras residências de alto padrão situadas à beira do rio.

Já no grupo que assina o outro documento temos uma distribuição muito maior de entidades pelo território da cidade. Entre as mais de 200 entidades contrárias à proposta da prefeitura temos uma variedade territorial muito maior. Apenas entre aquelas de atuação local temos 14 diferentes bairros da cidade. Entre estes temos tanto representações de associações de bairros populares, como a Vila Bom Jesus, Vila Farrapos, Sarandi, Belém Novo e Morro Santana, como também uma presença muito expressiva de bairros de classe média e alta. Associações que representam moradores da Auxiliadora, Três Figueiras, Menino Deus, Chácara das Pedras, Tristeza, Pedra Redonda e Vila Assunção também assinam o documento de crítica. Isto demonstra que este bloco tem uma diversidade geográfica e social muito maior do que o grupo que assina o documento favorável ao plano.

Esta diversidade se expressa também no tipo de entidades que assinam o segundo documento, temos neste grupo Associações Profissionais de arquitetos (IAB, Sindicato dos Arquitetos) de advogados (Renap- Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares), de economistas (Sociedade de Economia), biólogos (Conselho Regional de Biologia), de museólogos (Conselho Regional de Museologia), da Associação de Arquivistas do RS e da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária. Temos também 11 entidades sindicais, que vão desde a CUT e a Federação dos Bancários até diversas entidades sindicais de servidores do município e de trabalhadores da universidade. Temos também neste grupo 44 entidades ambientais, desde as mais gerais como a Agapan e a Apedema, até todo um conjunto de grupos e ativistas ecologistas os mais variados. Temos também entidades comunitárias de base local e mais todo um conjunto de movimentos sociais urbanos, desde coletivos que se mobilizam por pautas específicas (Coletivo Preserva Redenção, Coletivo Cidade Baixa de Luta) até movimentos mais amplos como o MNLM e MTST. Além deles há entidades ligadas às igrejas (Fundação Luterana de Diaconia, Pastoral da Ecologia Integral da Igreja Católica), entidades estudantis (DCEs da Ufrgs, PUC, UniRitter e Fadergs, diretórios acadêmicos dos cursos de arquitetura).

O grupo contrário, portanto, representa uma grande diversidade de organizações e movimentos, que expressam uma amplitude muito maior em termos de representatividade, expressando os mais distintos setores da sociedade civil da cidade. Mas além da diversidade social, em termos da pluralidade das organizações que compõem este bloco de oposição, uma análise comparativa nos aponta também para um contraste também do ponto de vista do conteúdo dos temas que cada um dos blocos representa. O documento de apoio à proposta da prefeitura, como vimos acima, é composto por um bloco monotemático: o dos interesses econômicos do mercado. Todos os componentes da primeira lista estão relacionados, de uma forma ou de outra, a interesses econômicos. Seja por conta das entidades representativas de distintos setores do mercado, seja pelos grupos de defesa mais ideológica desta visão de mundo, a lista de signatários do documento tem em comum uma visão do futuro da cidade a partir da lógica econômica do mercado.

Já o segundo bloco não só tem mais amplitude em termos quantitativos, mas também expressa uma diversidade muito maior de temas em torno dos quais estas organizações se articulam. Já mencionamos as entidades ambientalistas, mas se pode destacar a presença de 11 grupos e movimentos culturais, assim como entidades relacionadas com os temas de Direitos Humanos, grupos feministas, movimentos negros, ativistas do cooperativismo e da economia solidária, grupos LGBT, movimentos da área da saúde e das populações indígenas da cidade. E se destaca neste grupo a presença de um contingente significativo de organizações com um foco no urbanismo como o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, o BR Cidades, o Observatório das Metrópoles, o Instituto de Pesquisa e Inovação Social – TransLAB.Urb e o Laboratório de Estudos Urbanos.

A distinção entre os dois blocos, portanto, não tem a ver só com uma maior diversidade de organizações e movimentos que compõe cada um dos blocos, mas também há uma diferença clara entre um bloco que olha a cidade exclusivamente a partir da lente da economia e do mercado e outro bloco que expressa a multiplicidade de temas que envolvem a vida no ambiente urbano. Mas além destas duas distinções, relativas aos atores envolvidos e aos temas abordados, há também uma distinção do ponto de vista do conhecimento técnico. Sem querer menosprezar a consistência técnica e profissional das entidades que assinam o primeiro documento, há uma nítida concentração na abordagem econômica neste projeto de cidade. E os seus autores são organizações e movimentos que expressam fundamentalmente estes interesses econômicos.

Já no segundo documento é importante destacar a presença de instituições de ensino e pesquisa, de organizações e movimentos que pensam a cidade a partir de múltiplas dimensões e com base em estudos e evidências científicas multidisciplinares. Além das várias organizações especializadas na área já citadas acima, temos no segundo bloco entidades de ensino e pesquisa. O programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e o Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio assinam a carta crítica além das entidades de estudantes dessas áreas. Além destas instituições e movimentos este bloco conta com a participação de entidades profissionais de economistas, de biólogos, de arquitetos, de museólogos, de especialistas em patrimônio cultural e histórico. Fica evidente, portanto, uma significativa diferença em termos da qualidade da abordagem de cada um dos blocos: de um lado uma representação que se concentra nos interesses econômicos dos seus participantes e de outro lado grupos e instituições que articulam e mobilizam a ciência e o conhecimento para pensar a cidade.

Portanto uma comparação entre os signatários dos dois documentos aponta para uma distinção muito clara entre dois blocos. Primeiro temos de um lado um grupo monolítico composto basicamente por setores empresariais e de outro uma diversidade social de instituições, organizações e movimentos que pensam a cidade. Segundo temos de um lado uma abordagem que olha a cidade exclusivamente do ponto de vista econômico, como um espaço de valorização dos seus empreendimentos e de outro um bloco que olha a cidade a partir da ótica do urbanismo, da ecologia, da saúde, da cultura, dos valores e dos saberes dos distintos grupos que compõem a cidade. Por fim, temos também uma diferença entre um bloco monolítico aglutinado por interesses econômicos e ideológicos e de outro um bloco que mobiliza saberes e conhecimentos científicos multidisciplinares.

Em síntese, esta análise dos grupos que se alinham de um lado e de outro, a favor e contra o projeto de Plano Diretor da prefeitura, nos aponta para uma realidade muito clara. De um lado, a favor, temos um bloco que se estrutura a partir de interesses econômicos particulares e muito específicos, o de pensar a cidade como um espaço exclusivo para a valorização do capital. De outro lado temos uma multiplicidade de olhares e uma diversidade de atores que buscam pensar o futuro da cidade a partir da diversidade de interesses sociais e da multiplicidade dos interesses envolvidos.

* Tarson Núñez é cientista político, ativista, pesquisador associado do Observatório das Metrópoles. 

** Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.

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