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A cidade e o fetichismo da altura dos prédios

Um Plano Diretor preocupado em liberar restrições da construção civil e de altura de prédios, nada mais é que um produto da alienação humana

Mario Leal Lahorgue*

Por que esta insistência, este verdadeiro endeusamento de edifícios cada vez mais altos? O que está por trás desta noção de que a altura dos prédios é algo positivo, que mostraria a pujança de uma sociedade e das cidades? O que isto diz sobre o entendimento que muitos atores (públicos e privados) tem sobre a cidade em geral e sobre Porto Alegre em particular?

O objetivo deste texto é refletir o porquê da existência desta fixação sobre a altura de prédios. Aliás, não é a primeira vez que o Observatório das Metrópoles adverte que permitir maior área construída ou altura maior de edificações não é a solução.

O segredo deste fetiche das alturas talvez esteja no fato de que, como já disse um filósofo há mais de 150 anos, a sociedade atual aparece como uma imensa coleção de mercadorias. E a mercadoria nada mais é que um objeto externo, uma coisa que, devido à suas propriedades particulares, satisfaz alguma necessidade humana. E vejam bem, nós construímos prédios pela necessidade primária de abrigo. Uma moradia é uma necessidade básica.

Avancemos mais um pouco: não se deve perder de vista que a cidade é um enorme produto social. Por que “produto social”? Porque ela resulta de um esforço complexo e coletivo, no sentido de que tudo que enxergamos é um ambiente construído (e em permanente construção) ao longo do tempo, conjugando uma enorme quantidade de trabalhos distintos que se tornam compreensíveis quando pensamos que é a totalidade deste trabalho que fez a cidade ser como ela é. Pense em tudo que existe na cidade: ruas, redes de energia; redes de fornecimento de água e esgoto, edifícios e casas os mais variados (residenciais, comerciais, de serviços, etc.). Some-se a isso a gigantesca variedade de trabalhos (industriais, comerciais, de transporte, em serviços, etc.). Resultado: a cidade só faz sentido se olharmos todos estes fragmentos de obras e trabalhos como uma totalidade. É a cidade que dá sentido à tudo isso.

Só que é bem fácil perder de vista que tudo já construído é obra de nós mesmos. Quando nascemos, boa parte da cidade já existe, já está pronta. Assim como muita coisa continuará existindo depois que falecermos. Logo, parece que a cidade é exterior a nossos esforços e trabalho. A cidade parece nos dominar. Por que isso? Porque nossa sociedade funciona a partir da produção de mercadorias. Tudo que construímos na cidade se transforma em mercadoria. E a mercadoria precisa ficar livre de quem a produziu, porque só assim pode ser vendida. Como não costumamos perceber isso, a mercadoria parece misteriosa. É como se fosse um fetiche. Este caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos seres humanos os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores.

Não se perca, leitor(a): fetichismo é quando a mercadoria parece existir sozinha e independente de nós, e nos esquecemos que ela é uma construção humana. Na cidade, ao invés de venerarmos deuses, veneramos edifícios. E quanto mais altos, parecem mais veneráveis. Ou seja, o fetichismo serve para esquecermos que a cidade é uma obra humana, que nós devemos usufruir, não uma mercadoria que nos subordina e nos aliena.

Por que edifícios altos tendem a ser alienantes? Primeiro lugar, vamos lembrar do significado da palavra: alienar significa separar, tornar alheio. Agora pense no seguinte: se você mora no 50º andar, quantas vezes você desceria para caminhar na calçada? A constituição física, material de edifícios altos já é feita para nos separar de tudo que acontece na rua. Aliás, muitas vezes o próprio comprador exerce esta opção de propósito: ele quer realmente se separar do outro, que parece ameaçador e perigoso. Portanto, resulta numa alienação (separação) da cidade e dos outros habitantes. E aí a sequência lógica do processo continua: a separação física se completa com a oferta de condomínios que “tem tudo”: academia de ginástica, piscina, parque infantil, quadras de esporte, pequenos comércios automatizados etc. Sim, é circular: quanto mais existem estruturas físicas separando, mais haverá gente querendo se separar e justificando a oferta destes condomínios.

Voltando: a idolatria da altura de prédios só tem sentido porque se perde a noção de que construímos prédios pela necessidade de abrigo. Em outras palavras, invertemos o valor das coisas: não valoramos mais o edifício porque ele tem uso de moradia (o tal valor de uso) e sim porque ele é uma mercadoria que pode ser lucrativa num processo de compra e venda (o tal do valor de troca). Logo, nem importa mais se alguém vai ocupar o apartamento para morar e sim se o proprietário vai conseguir ter lucro no seu “investimento”. O resultado do fenômeno do fetichismo pode ser visto empiricamente pela quantidade enorme de imóveis mantidos desocupados (vazios) computados pelos Censos Demográficos: não é só um problema de indivíduos que se alienam e não percebem a inversão de valores, é algo com consequências reais e tangíveis. Estas consequências aparecem de várias formas, como por exemplo quando se colocam os apartamentos à venda de um edifício. Os andares mais altos custam mais caro, simplesmente porque se vende algo que não pertence aos atributos dos imóveis em si: a vista, a paisagem. Ora, prédios cada vez mais altos e em maior quantidade tem o efeito de barrar a vista da maioria dos habitantes. Então, primeiro você impede a vista; depois… cobra caro por ela! Não é este um dos motivos para se vender as coberturas não só com preço elevado, mas com uma aura de exclusividade e luxo?

Então, no final das contas, um Plano Diretor preocupado em liberar restrições da construção civil e de altura de prédios, nada mais é que um produto da alienação humana. Porque nos subordina à uma abstração, as tais de “leis do mercado”. O mercado é uma forma com que a humanidade criou para intercâmbio. Não é nós que devemos nos subordinar ao mercado. É o mercado quem deve se subordinar aos interesses humanos, sociais e de bem-estar coletivos. No final de contas, o projeto do novo Plano Diretor, como incentivador de fetichismo estéril, produz cidades disfuncionais e não resolve os problemas existentes; na verdade os potencializa. Portanto, deve ser, no mínimo, repensado.

É isto que o Observatório das Metrópoles propõe esta semana com o evento “Olhares sobre o Planejamento Urbano e a Adaptação Climática das Cidades”. Vamos debater a proposta de plano diretor de Porto Alegre e os instrumentos de política urbana para a Adaptação Climática. Assuntos na ordem do dia na sociedade porto-alegrense e gaúcha.

*Mario Leal Lahorgue é professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.