A esquerda no Recife vive, há alguns anos, um momento de refluxo. A cidade é gerida há mais de 10 anos por um modelo de lógica empresarial que põe no centro das decisões os interesses de classes dominantes ligadas à especulação imobiliária, com quase nenhuma mediação da agenda popular. Isso ocorre com pouca resistência dos atores organizados da esquerda, que falam com firmeza hoje por meio de quadros políticos que preservam sua independência.
Comecemos essa reflexão delimitando melhor o que seria esse “modelo empresarial” e porque ele não tem nada de progressista ou popular, devendo ser, portanto, criticado e superado.
O modelo ao qual nos referimos literalmente entrega às grandes construtoras o poder de redesenhar o planejamento urbano da cidade, adaptando as condições de vida de 99% dos recifenses aos interesses do 1% mais ricos.
O mais recente caso emblemático deste modelo foi a remoção de palafitas no Pina para construção de um parque que servirá de playground para um prédio de luxo à beira do rio. Poderíamos citar outros tantos. A especulação imobiliária avança nas regiões centro-sul e norte da cidade tendo o poder público como verdadeiro braço operativo de seus interesses – em detrimento das vidas e moradias de pessoas pobres.
Ocorre que isso implica toda a cidade. Esses empreendimentos demandam mais construção de asfaltos para carros, como as novas duas vias a serem construídas para o parque no Cais José Estelita. A cidade vem sendo mais aterrada, mais asfaltada e mais adensada com a verticalização, o que impacta a todos, porque pressiona a mobilidade já caótica, agride os rios e piora a situação socioambiental numa cidade já apontada pela ONU como uma das mais propensas a desastres ambientais do mundo.
O poder de mando das grandes empresas é tão forte que em 2023, mesmo após a pior tragédia ambiental dos últimos 30 anos em Recife, com 51 vítimas de deslizamentos de terras, a prefeitura enviou à Câmara de vereadores uma proposta de flexibilização das leis ambientais que favore as empresas com o chamado “autolicenciamento”, modelo predatório desastroso adotado pelo governador Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, sendo uma das causas da grande cheia em Porto Alegre.
O governo dos ricos, liderado pelo PSB, deixa evidente a dominação de classe também no orçamento público. É só constatar que entre 2013 a 2022 os investimentos nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), áreas mais pobres da cidade, caíram vertiginosamente. O mesmo orçamento nos mostra que, nesse período, o investimento em obras de urbanização das áreas de risco nos morros somou menos da metade dos gastos das obras “tapa buracos” que atendem aos bairros de classe média. Nesse ínterim, programas de investimento na urbanização de áreas de morros, como o Guarda Chuva, criado na gestão do PT, foram simplesmente desconstruídos.
Para o modelo empresarial dominar o orçamento e o planejamento, no entanto, é necessário esvaziar a arena política. Nesse sentido é que foi desmontada a riquíssima política de participação popular que o Recife produziu nos governos da esquerda durante a primeira década do século 21. Estimulada pelo Orçamento Participativo, a rede de organização política pulsante nas periferias certamente seria um empecilho para a imposição de um modelo que castiga bairros periféricos com o consentimento do legislativo.
Além do mais, o modelo empresarial importa a lógica do setor privado para o público, apostando tudo nas planilhas dos técnicos – para eles, sempre mais aptos a governar a cidade – em detrimento do povo, tido como incapaz e ignorante, a ser tutelado pela aliança entre grandes empresários e famílias tradicionais da política. Neste modelo, os operadores na máquina pública são a nova geração de burocratas do setor contábil do Estado.
É nessa cidade, dominada por um modelo elitista, que está fervendo um caldo de desigualdade imensa a entrar em ebulição em algum momento. Numa das capitais que mais tem pessoas com fome, na miséria, sem saneamento, mais de 150 mil recifenses estão abaixo da linha da pobreza. Quase 50% da cidade não tem acesso a coleta de esgoto. O déficit habitacional chega a 70 mil moradias. A passagem metropolitana de ônibus é cara e não permite que pessoas pobres circulem todos os dias, além do trânsito ser um dos piores do país.
No Recife, para onde se olha vemos miséria, desigualdade e dominação de classe. Mas também se enxerga resistência, na cultura das novas gerações das periferias, nos setores da classe média progressista, na ascensão dos movimentos de mulheres e do movimento negro e em lideranças políticas históricas e novas que resistem à força desse modelo e de seus mandachuvas.
E onde estão as organizações da esquerda? O que o campo popular tem a dizer desse modelo francamente antipopular?
A esquerda não pode perder a memória de seus próprios feitos na cidade e abdicar de discutir o futuro. Há somente 25 anos elegemos um prefeito sem sobrenome tradicional, saído da luta social, com o apoio dos movimentos sociais, da intelectualidade, das camadas populares, do mundo sindical, das pastorais comunitárias e fizemos um governo que, com suas contradições, efetivamente priorizou os setores mais empobrecidos da cidade. Uma parte das políticas que ainda hoje socorrem as pessoas em Recife vem desse tempo.
Onde está nossa capacidade de fazer conexões com a classe artística, com as lutas territoriais, com os movimentos sociais, com a intelectualidade nas universidades e tantos outros setores em torno de um programa popular e transformador? Um programa que nos tire do imobilismo e da aceitação quase compulsória de um modelo que já não consegue mais enganar a ninguém, nem nas redes sociais.
Está na hora das esquerdas no Recife retomarem a capacidade de crítica, se dedicarem aos setores empobrecidos da cidade e se rearticularem. Para esse desafio o PT e os movimentos sociais são fundamentais.
Como dirigente do Partido dos Trabalhadores e candidato a presidente municipal do PT no Recife, entendo ser urgente a rearticulação de setores populares que pensem a cidade por outra ótica. Trazer para esse debate o PT significa reforçá-lo decisivamente. Isso não nos impede de seguirmos dialogando com todos os setores que se opõem ao bolsonarismo e construirmos amplas frentes pela democracia. Cada coisa em seu lugar.
Enquanto a esquerda de Recife não se reorganiza e recupera sua capacidade de enfrentamento, a extrema direita já está tentando fazer isso na cidade, do seu modo tosco. Cabe a nós termos coragem de recuperar a força que já tivemos e impedirmos que sejam eles a voz do descontentamento popular que virá.
Mãos à obra.
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