Que a floresta é high-tech eu nunca tive dúvida. Não há nenhuma tecnologia desenvolvida pela humanidade que supere a da natureza. Mesmo que encontremos formas de interação entre a tecnologia moderna e a tecnologia ancestral, como o caso da ayahuasca, uma junção quase improvável de um tipo específico de cipó e de folhas no meio de mais de 30 mil espécies de plantas amazônicas, ainda assim, o mérito é todo da mãe terra.
Porém, uma união de tecnologias possibilitou o aprimoramento de uma aldeia inteira que havia sido abandonada por questões cheias de mistérios (que você confere abaixo) para transformar o território na sede da 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca, que aconteceu entre os dias 25 e 30 de janeiro, na Aldeia Sagrada, do povo Yawanawa, no coração da floresta amazônica acreana.
Tive a grande oportunidade de participar do encontro que contou com quase 300 participantes, sendo a maior parte deles pertencente a 34 povos indígenas da bacia Pan-Amazônica e de outros países do mundo, como México, EUA e até Egito. Todos atentos a questões que envolvem o uso da ayahuasca, seu transporte e, principalmente, seus direitos genéticos, que estão ameaçados por pedidos de patente espalhados pelos mundo sem nenhum tipo de consulta ou reparação aos guardiões dessa medicina ancestral. Esse tema eu vou discorrer melhor na matéria completa sobre a Conferência que você vai poder conferir aqui no Brasil de Fato em breve. Mas agora eu quero contar para vocês os bastidores de como esse evento ficou de pé.
Imagine uma aldeia marcada por invasões e violências dos colonizadores que foi preterida pelo povo Yawanawa por conta de eventos misteriosos decorrentes dos desafios enfrentados por eles naquele chão, que foi tomada pela floresta, servindo apenas como um cemitério de lideranças e casa de espíritos sofredores, sendo transformada na sede da conferência para receber indígenas e alguns poucos não indígenas do Brasil e do mundo para discutirem o futuro da ayahuasca e as ameaças aos saberes ancestrais. Durante todo seu período de ostracismo, ninguém nunca se atreveu a colocar os pés na Aldeia Sagrada Yawanawa, nas margens do rio Gregório, no Acre. Sua fama de “assombrada” percorreu por anos. Porém, o Grande Espírito tinha planos para aquela região e a ayahuasca foi a responsável pela retomada desse território.

Durante a terceira edição do evento, que ocorreu no Instituto Yorenka Tasorentsi, ainda sem entender muito bem o propósito do encontro, a liderança espiritual Putany Yawanawa teve uma experiência durante uma cerimônia com ayahuasca que ajudou a colocar de volta no mapa a Aldeia Sagrada. Putany teve uma miração – visões místicas que o chá proporciona – que apontava a Aldeia Sagrada como o lugar que deveria receber uma edição da conferência. Seu marido, o cacique Nixiwaka, recebeu a notícia com surpresa, mas sua confiança na força espiritual de sua companheira foi maior do que qualquer receio. Então, a decisão foi comunicada à organização da conferência, o Instituto Yorenka Tasorentsi, fundado pela liderança espiritual Benki Piyãko, do povo Ashaninka. E a partir daí começou uma movimentação inédita e faraônica em terras Yawanawa.
Putany e Nixiwaka deixaram de frequentar a Aldeia Sagrada eventualmente para limpezas espirituais e se mudaram de forma definitiva da aldeia Nova Esperança para esse espaço que já levantava dúvidas sobre sua fama de amaldiçoado, uma vez que ali era a morada final de lideranças importantes do povo Yawanawa. Então, como poderia ser um lugar ruim? Mesmo assim, o medo foi um sentimento latente. As forças que ocupavam aquele chão não passaram despercebidas e, juntos, enfrentaram situações que desafiam a lógica racional e cartesiana. Mas a ayahuasca já tinha mandado o recado. Agora era seguir com a missão. Porém, como aprimorar uma aldeia inteira para receber um evento tão importante? Com que dinheiro? Quem poderia ajudar? Mas ninguém detém a força viva da floresta.
Enquanto no imaginário popular, construído com base em preconceitos e estereótipos, nos quais os indígenas são imputáveis, selvagens e menos indígenas quando usam um celular, na realidade, muitos deles viajam o mundo todo e são muito bem relacionados. A ayahuasca se tornou a amálgama entre todas as parcerias que se fizeram necessárias para a construção da aldeia. Com a expansão das medicinas tradicionais indígenas pelos quatro cantos do mundo, um dos bônus foi o avanço das culturas, das medicinas e das pautas indígenas.
As curas proporcionadas pela ayahuasca tornaram diversos tipos de pessoas confluentes da causa, que, como gratidão, se colocam à disposição para ajudar no que for necessário. É uma via de mão dupla, onde todos ganham de alguma maneira, o que reflete a potência das verdadeiras conexões e parcerias entre os não indígenas e os povos da floresta. O jogo está na mesa, mas com ética é possível avançar e deter o genocídio indígena, que segue de vento em popa, sendo literal ou simbólico. E toda a discussão feita na conferência, por fim, tem a ética como pano de fundo.
E para que esse projeto fosse um sucesso, pessoas do mundo todo se movimentaram para arrecadar fundos para levantar a milionária estrutura que foi desenhada pelo arquiteto paulistano Marcelo Rosenbaum. O dinheiro veio da venda de NFTs criados em parceria entre os Yawanawa e o artista turco Refik Anadol, referência mundial em arte que envolve Inteligência Artificial Generativa e que recebeu em fevereiro deste ano o prêmio Impact Awards, da revista Time.

Na aldeia, Refik era só sorriso na manhã em que tomamos café juntos na casa do cacique Nixiwaka, momento em que ele me contou como foi parar nessa história.
“Conheci o povo Yawanawa e a ayahuasca através da minha esposa [que prefere os bastidores] há oito anos. E minha vida mudou. Quando surgiu a oportunidade de ajudar a captar dinheiro para construir a Aldeia Sagrada, eu aceitei prontamente. Foi então que veio a ideia de produzir NFTs a partir de desenhos das filhas do Nixiwaka. Essa cocriação entre a arte criada pelas irmãs Nawashahu e Mukashahu e a IA generativa resultou na obra Winds of Yawanawá, com um vídeo central e uma coleção de mil NFTs, todos vendidos em menos de 10 minutos”, relembra.
Durante a conferência, Refik apresentou alguns dos NFTs da coleção “Winds of Yawanawa”, que foram todos vendidos em 2023 por 2,5 mil dólares cada um, totalizando cerca de R$ 15 milhões (conversão atual). As obras são inspiradas também, além dos desenhos das filhas do cacique, em dados meteorológicos captados na aldeia por um sensor, que traduziu a temperatura, os ventos, a incidência solar, etc. em dados para compor imagens que lembram as mirações da ayahuasca. Outra tecnologia empregada foi o sistema de blockchain, que melhora a transparência e a prestação de contas de toda a cadeia envolvida. A iniciativa foi vista pelos envolvidos como uma união exemplar das tecnologias modernas, naturais e ancestrais, mostrando ser possível a coexistência.
Biraci Jr. Iskukua, liderança na Aldeia Nova Esperança Yawanawa, demonstra muito orgulho por seu povo por ser pioneiro no lançamento de NFTs indígenas e destaca o protagonismo dos povos originários como um dos grandes trunfos. “Somos um povo tradicional que vive na floresta em harmonia com o espaço e com tudo que está à nossa volta, protegendo o meio ambiente e preservando as plantas, os animais, as águas, assim como nossos antepassados nos ensinaram. Sempre soubemos do grande valor da tecnologia da floresta, que hoje é agregado somente a coisas desse novo tempo, e que não é verdade. As árvores têm seu próprio sistema de sobrevivência, junto com as outras plantas, animais, tudo tem um propósito e uma função. As novas tecnologias chegaram na floresta e hoje ajudam na disseminação desses conhecimentos”, afirma.

Entretanto, a liderança indígena destaca que a tecnologia moderna não é um problema quando ela chega na aldeia, os problemas surgem na forma como ela é usada dentro das comunidades tradicionais. “Se ela for usada para proteger e para cuidar, ela se junta com o conhecimento ancestral e, assim, elas se complementam. E o projeto de NFT é a prova disso. O grafismo na nossa arte ancestral, que representa as plantas, as aves, os animais de poder, se juntou com a Inteligência Artificial e fez ela ganhar vida, movimento, para levar essa energia da floresta para o mundo moderno, valorizando a história, a cultura, a ancestralidade e a espiritualidade de um povo. Esse é apenas um exemplo disso, mas todos que virão precisam ter essa consciência de serem complementares. Uma tecnologia não pode se sobrepor a outra.”
O resultado da arrecadação foi a construção de três grandes obras sustentáveis: o shuhai, espaço onde acontecem os principais encontros e cerimônias, com 855 metros quadrados e 33 metros de diâmetro, o complexo Y (de Yawanawa), onde é possível hospedar cerca de 250 pessoas, além de um refeitório comunitário com 1,877 metros quadrados que, após a conferência, deverá ser transformado na Universidade de Saberes Ancestrais Yawanawa, e uma estrutura residencial, que foi projetada com módulos replicáveis que facilita a expansão e a criação de outras moradias.
Toda a obra pode ser vista como uma herança que vai além da construção física e se estende para o fomento cultural, político e econômico desse povo. A construção foi uma parceria realizada com base no protagonismo indígena, gerando troca de saberes, novos conhecimentos e renda.

– Arquivo Pessoal
“Eu tenho uma relação de 15 anos com os Yawanawa, tempo em que sonhamos juntos a realização de diversos projetos, sempre numa tentativa de achar uma identidade dentro das construções, que foram adaptadas a partir desse encontro com o não indígena para levar mais durabilidade e conforto para essas construções dentro da floresta, se unindo com as técnicas que já existem. Quando surgiu a oportunidade da Conferência Indígena da Ayahuasca, o Biraci [Nixiwaka] e a Putany me convidaram para fazer esse projeto. Pensamos juntos os espaços dentro das necessidades. Tudo foi feito com madeira nativa da floresta e com mão de obra local, indígena e ribeirinha, o que fez com que a economia local girasse. Convidei um especialista em estrutura em madeira, o Hélio Olga, e fizemos um trabalho de altíssima engenharia. Foi um verdadeiro encontro de saberes: da ciência dos cálculos e a da floresta”, contou Rosenbaum.
E parece que a floresta aceitou muito bem.
*Caroline Apple é jornalista há quase 20 anos com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil, abordando, principalmente, temas relacionados aos Direitos Humanos, como a causa indígena. É uma das primeiras jornalistas no país a se especializar na cobertura de cannabis para fins medicinais. Daimista, ayahuasqueira e psiconauta, Carol é influenciadora digital sobre temas relacionados à espiritualidade e ao autoconhecimento com ênfase no uso da ayahuasca em contexto urbano.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente reflete a linha editorial do Brasil de Fato.