O músico carioca Lucas Kastrup é um dos fundadores da banda de reggae brasileira Ponto de Equilíbrio. Suas músicas já embalaram muitos rolês pelo Brasil afora nos últimos 25 anos, levando mensagens de paz, luta e muita positividade através do reggae jamaicano e a cultura rastafári. A maior parte das composições da banda é de Lucas, como a famosa Santa Kaya, que é considerada um hino canábico na comunidade regueira.
Mas o que pouca gente sabe é que no paralelo aos hits e aos momentos enérgicos na bateria da banda, Lucas traça um caminho de devoção à doutrina do Santo Daime, religião ayahuasqueira da qual ele faz parte há 23 anos e que o ajudou e ainda o ajuda a moldar todo seu trabalho como músico e compositor. Ativo em sua irmandade, há mais de dez anos Lucas dirige alguns trabalhos da doutrina na igreja que frequenta na região serrana do Rio, a Flor da Montanha, fundada pela Mãe Baixinha, grande responsável pelo hibridismo da Umbanda com o Santo Daime. Porém, não é só isso.
“Construí minha família com o Daime. Minha esposa, Juliana Genuncio, é fardada [nome dado para quem faz parte da doutrina do Daime] e puxadora [de hinos] experiente, temos três filhos fardados. Tivemos a oportunidade de irmos seis vezes ao Mapiá [sede da doutrina do Santo Daime da linha do padrinho Sebastião Mota de Melo, localizada no Amazonas] e também desenvolvi minha carreira acadêmica como antropólogo. Na minha caminhada como pesquisador, eu sempre escolhi ‘música e ritual` como terreno de estudos, com destaque para o daime.”
Kastrup se jogou na vida acadêmica, realizando mestrado, doutorado e pós-doutorado, além de ser Pesquisador Visitante Sênior no Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de diversas pesquisas que envolvem assuntos e personagens presentes na história do Santo Daime. E se você é fã da banda, saiba que essa doutrina que nasceu no meio da floresta amazônica está mais próxima da sua vida do que você imagina.
Recebendo hinos
“Muitas das composições no Ponto de Equilíbrio são inspiradas também por minhas experiências extrassensoriais, especialmente com o daime”, revela Lucas.
A pesquisa de mestrado em antropologia realizada pelo baterista foi o fenômeno de “receber e ofertar hinos”, prática que acontece no Santo Daime.
Receber um hino é mais do que compor. É uma forma de canalização de uma mensagem que vem de um lugar além do racional, mas que chega através dele para que haja a manifestação da informação, um processo diferente daquele vivido por quem compõe. Quem recebe e compõe uma letra ou uma melodia consegue perceber a diferença entre os dois processos. Muitas vezes a letra chega pronta com a melodia e essa mediunidade pode se manifestar em todos os tipos de pessoas, até mesmo naquelas que não têm dons musicais e/ou artísticos desenvolvidos de forma prática. Receber hinos, realmente, é um fenômeno interessante de ser analisado, mas com baixa capilaridade para o entendimento de quem não vive essa realidade. Porém, isso não significa que as pessoas que pouco compreendem o fenômeno não possam ser impactadas de maneira indireta por ele, como é o caso de quando os fãs do Ponto de Equilíbrio ouvem certas “composições” de Lucas.
“Algumas das minhas músicas no Ponto de Equilíbrio são, de alguma forma, recebidas também. É o caso da música Novo Dia, que é bem conceituada na história da banda”, conta.
Tanto na matéria quanto no espiritual, Lucas segue manifestando a arte da música. O daimista já é guardião de um hinário chamado Lembranças da Memória, o qual finalizou em 2011. Kastrup passou sete anos sem receber mais nenhum hino e, por isso, acreditou que esse processo havia se fechado para ele até que, durante uma missa [um dos trabalhos de Santo Daime o qual o baterista é responsável por dirigir] recebeu um hino que daria o nome ao seu próximo hinário, o Mamãe Universo, ofertado a uma amiga, veterana no Daime.

Uma ode ao feminino
O hinário Mamãe Universo não chegou de uma vez. Após receber o primeiro hino, demorou um ano para que o próximo chegasse. E, desta vez, o astral mandou recado para a prima do Mestre Irineu, fundador da doutrina do Santo Daime. Rita Serra era moradora de São Vicente Ferrer, no Maranhão, terra natal de Raimundo Irineu Serra, local em que Lucas passou algum tempo estudando as relações entre o Baile de São Gonçalo e o Daime. “Ela já tinha 90 anos e estava cega. Por motivos de saúde, ela [Rita] precisou amputar uma das pernas. Quando foi o dia da amputação, o pessoal me avisou, foi quando eu recebi o hino Rainha e ofertei a ela. O hino foi abraçado onde o mestre nasceu”, conta Lucas.
Já o terceiro hino, chamado Tributo, veio após uma consagração de Santa Maria [nome dado à cannabis pelo padrinho Sebastião]. Mas não foi em um dia qualquer. Ao receber o hino, Lucas enviou no grupo da família e descobriu pelo seu pai que aquele dia era o aniversário da sua avó paterna. Portanto, mais uma senhora estava ligada ao hino. E as sincronicidades não pararam. O quarto hino veio no dia de Iemanjá, que foi ofertado a uma amiga que sentiu-se tocada pela mensagem. O quinto hino chegou após um trabalho intenso de Daime, mas estava na primeira pessoa e no feminino, além de ter um ritmo mais acelerado. Ali estava presente a personalidade de sua esposa, que estava em viagem ao exterior na época. Então, o hino Nós Vamos Triunfar foi ofertado a ela.
Nesse período, Lucas e sua família lidavam com a saúde debilitada de sua mãe, que sofria com complicações pulmonares. O baterista conta que sua mãe, desde o início, o incentivou a tomar Daime e se tornou uma “consultora de hinos”. “Ela amava [os hinos], se emocionava. Minha mãe tinha uma mente muito jovem e ativa. Mas a situação da sua saúde foi ficando complicada. Foi quando tomamos um pouco de daime em família e cantamos juntos os novos hinos que eu havia recebido. Dessa experiência eu percebi que o hinário todo, desses cinco hinos, era para a minha mãe. Inclusive, é a foto dela que está no caderninho”, conta.
Márcia Kastrup Fonseca Rehen fez a passagem em novembro de 2023, deixando para Lucas um legado espiritual por meio do hinário Mamãe Universo. Porém, a finalização da obra veio 15 dias após o seu falecimento, quando chegou para Lucas o hino No Piscar dos Olhos, como uma mensagem de sua mãe. Então, o hinário foi concluído e lançado com gravação oficial no dia 20 de fevereiro de 2025, dia que seria comemorado o aniversário da Márcia.
“Na ocasião da passagem da minha mãe, minha família se reuniu para tomar Daime. Plantamos 13 mudas de rainha [folha com que é feito o chá], para corresponder ao número de netos, e adubamos com as cinzas da minha mãe. Esse movimento aproximou toda a família da doutrina: meu pai, irmãos e sobrinhos. Faz tudo muito sentido”, diz.
Um dos irmãos de Lucas é o renomado neurocientista Stevens Kastrup Rehen que entre os temas de suas pesquisas inclui experimentações com substâncias presentes no chá, como a harmina, um dos alcaloides encontrados nos cipós usados para fazer a alquimia da ayahuasca.
Hinário e participações especiais
O hinário Mamãe Universo tem seis hinos e conta com uma parceria de peso. Na flauta e no clarinete está o músico veterano Marcelo Bernardes. Marcelo é viúvo da Baixinha, faz parte da banda do Chico Buarque desde a década de 1980 e já contribuiu para inúmeros trabalhos relevantes na música popular.
Marcelo e Lucas também produziram juntos no ano passado o “Tribute to Maria Sabina”, realização da Scirama, uma startup brasileira de Ciência Psicodélica, que traz músicas em homenagem a essa indígena mazateca, do México, que generosamente apresentou os “meninos santos” (cogumelos mágicos) ao homem branco. Mas essa é outra história.
Para ouvir o hinário Mamãe Universo basta clicar aqui.