A recente imposição de uma tarifa de 100% sobre filmes estrangeiros nos Estados Unidos, anunciada pelo presidente Donald Trump, impulsiona a discussão sobre a relação entre a indústria audiovisual, a soberania nacional e a pluralidade de percepções que um país tem sobre si mesmo.
A medida foi anunciada no domingo, dia 4 de maio, na plataforma Truth Social. Na publicação, Trump afirmou que autorizaria o Departamento de Comércio e o Representante Comercial a começarem um processo para a imposição da taxa a filmes produzidos fora dos EUA e importados para o país. Segundo ele, a indústria cinematográfica estadunidense estaria “morrendo uma morte muito rápida”, pois haveria “um esforço conjunto de outras nações e, portanto, uma ameaça à Segurança Nacional”.
Nos últimos anos, grandes estúdios de cinema e TV passaram a filmar alguns de seus maiores sucessos fora dos EUA. Países como Canadá, Irlanda, França, África do Sul e Nova Zelândia, por exemplo, possuem Film Commissions (municipais ou federais) que oferecem vantagens, como isenções fiscais e outros benefícios diretos para atraírem essas grandes produções. Isso acaba sendo mais vantajoso financeira e logisticamente do que filmar nos EUA.
Mas o que isso tem a ver com o cinema brasileiro?
Por enquanto, a medida não afeta significativamente os filmes brasileiros que circulam por lá. Isso porque a presença do nosso cinema nos EUA ainda é muito pequena. A nova tarifa, caso efetivada, pode afetar produções futuras e dificultar a circulação de filmes brasileiros que, por exemplo, sejam indicados a premiações naquele país, como o Oscar, por exemplo, pois o custo de distribuição e exibição poderá dobrar, tornando inviável a entrada de produções independentes de pequeno porte nas salas comerciais.
Filmes de lá, filmes de cá
De acordo com dados da Motion Picture Association, os filmes dos EUA ocupam entre 80% e 90% das telas naquele país anualmente. Nas plataformas de streaming, o consumo de filmes produzidos nos EUA pelo público de lá fica entre 60 e 70%. No Brasil, os filmes estadunidenses tomaram, nos anos de 2022 e 2023, cerca de 85% dos cinemas. Os dados de 2024 apontam uma queda pequena, para 83% de ocupação dos filmes de lá nas salas brasileiras.
Pouquíssimas obras brasileiras conseguem alguma presença relevante nos cinemas dos EUA. Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) fez US$ 7,6 milhões em bilheteria por lá. Até o primeiro semestre deste ano, Ainda Estou Aqui (Walter Salles, 2024) tinha arrecadado pouco mais de R$ 6 milhões, tendo ocupado 762 salas de cinema de acordo com levantamentos da Box Office Mojo. Os EUA possuem cerca de 39 mil salas ativas. O filme brasileiro vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2025 ocupou menos de 2% dos cinemas naquele país.
Em relação aos cinemas negros brasileiros, essa presença é ainda menor. Marte Um (Gabriel Martins, 2022), indicado brasileiro para concorrer ao Oscar em 2023, sequer chegou às salas de cinemas comercialmente nos EUA. Distribuído pela Array, o filme foi direto para a Netflix em países de língua inglesa, incluindo Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido. Racionais – Das Ruas de São Paulo Pro Mundo (Juliana Vicente, 2022), que chegou a figurar entre os 10 filmes mais vistos na Netflix mundialmente, também não circulou comercialmente nas salas estadunidenses.
A indústria de Hollywood domina as bilheterias brasileiras, com filmes de grande orçamento sendo amplamente distribuídos no país. Uma possível retaliação comercial por parte do Brasil, como a imposição de tarifas semelhantes sobre filmes estadunidenses, poderia impactar o público e os cinemas locais. Mas seria esta a solução imediata?
O Brasil já possui regulação que tenta amenizar esse domínio. Em 2001, foi estabelecida uma Medida Provisória (2.228/2001) que determinava que, por 20 anos, as salas de cinema deveriam cumprir uma cota mínima de exibição de filmes brasileiros. O prazo deveria ter sido renovado pelo então presidente Michel Temer em 2021 e seguiu ignorado por Jair Bolsonaro. A renovação só foi realizada no ano passado, por Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Lei 14.814/2024, que estabeleceu novo prazo até 31 de dezembro de 2033.
Regulação do streaming e o “Brasil” do cinema brasileiro
A tarifa imposta por Trump também reacendeu debates sobre a necessidade de regulação do mercado de streaming no Brasil. Com plataformas como Netflix, Amazon Prime e Disney+ dominando uma boa fatia do consumo de conteúdo audiovisual, o Congresso brasileiro retomou, em 2023, a discussão de projetos que buscam equilibrar a participação de produções nacionais nessas plataformas, garantindo maior visibilidade e financiamento para o setor.
A decisão dos EUA pode acelerar esses debates e fortalecer argumentos a favor de cotas mínimas de conteúdo nacional, investimentos em produção independente brasileira com direitos patrimoniais no Brasil, e estimular ainda mais a formação de público para conteúdos nacionais. O avanço da regulação do streaming, com atenção à soberania nacional, cria um cenário de maior proteção para o cinema brasileiro.
Num país dominado pela hiper-presença de narrativas audiovisuais na perspectiva dos EUA, essa regulação pode representar uma virada fundamental para ampliar a percepção que o Brasil tem de si mesmo. Imagine se metade das telas brasileiras fosse ocupada pela multiplicidade das narrativas possíveis deste imenso país? Imagine se tivéssemos mais cinemas negros brasileiros nutrindo o imaginário – a autoestima – da nossa população?
O Projeto de Lei (PL) n.º 2.331/22, em tramitação atualmente, teve um substitutivo apresentado pela relatora Jandira Feghali em 8 de abril. O texto, agora em discussão, apresenta alguns pontos positivos, mas ele pode melhorar – e muito – em relação à defesa da soberania nacional. Um dos pontos fundamentais para nós é a inclusão do conceito de empresas vocacionadas para a reparação histórica, que são empresas com quadro societário majoritariamente negro ou indígena e com produção voltada para a desconstrução de estereótipos historicamente negativos em nossa sociedade.
Isso significaria a ampliação das ações afirmativas para agentes econômicos de altíssimo impacto social e possibilitaria que um conjunto vigoroso de filmes e outros conteúdos audiovisuais negros existam, nutrindo melhor a percepção que o país tem sobre si mesmo e gerando emprego e renda para um conjunto múltiplo, diverso, de profissionais do setor.
Povoar o imaginário brasileiro com narrativas audiovisuais negras e indígenas não diz respeito apenas à reparação histórica (o que já seria muito). Diz respeito à própria definição de Brasil no que compreendemos como cinema brasileiro. E, fundamentalmente, diz respeito à soberania nacional.